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Maria Irene Ramalho

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Opressão

André Cristiano José
Publicado em 2019-04-01

Falar em opressão nos dias de hoje, pressupõe reconhecer que, não obstante o facto de imperar uma certa tendência triunfalista em relação às conquistas da humanidade, persistem no mundo experiências de sofrimento, exclusão e silenciamento de povos, grupos e pessoas individualmente consideradas. Trata-se de reconhecer que o Sul existe enquanto contra-polo de um Norte que comummente se reveste na forma de colonialismo, neo-colonialismo, capitalismo, patriarcado, racismo, xenofobia, sexismo e homofobia. Socorrendo-nos de Albert Memmi, diríamos que a opressão constitui a expressão de discursos e práticas de heterofobia, isto é, o lugar de destino e o produto de todas as constelações fóbicas e agressivas dirigidas a outrem e que pretendem legitimar-se através de argumentos diversos, quer estes sejam de índole biológica, psicológica, histórica, cultural, social ou metafísica.


O que é central na opressão é o injusto, cruel e desumano exercício de poder sobre pessoas, grupos e povos, resultante da operacionalização de estruturas de dominação, ancoradas (ou não) em ideologias de superioridade. Nesse sentido, a ocorrência de situações de opressão não estará necessariamente condicionada ao uso de violência física extrema, nem à existência de uma correlativa legitimação jurídico-formal (como aconteceu, por exemplo, nas sociedades esclavagistas e no regime do apartheid). Estará, sim, entranhada nas normas, práticas, hábitos e símbolos veiculados e reproduzidos na vida quotidiana. É o que Jean Harvey denomina “opressão civilizada”.


Pois, a opressão se apresenta e representa de múltiplas e intersectadas formas, tão complexas quanto as sociedades contemporâneas. Embora reconhecendo a impossibilidade de definição de um elemento agregador que caracterize todas as situações e condições de opressão, podemos afirmar que o que é comum aos oprimidos é o facto de verem limitada (ou mesmo proibida) a faculdade de expressar a sua própria vida, os modos de pensar, agir e sentir. Em contraposição a esse estado de impossibilidade ou de limitação da vida humana, a opressão pressupõe vantagens para quem a pratica. Por isso, “opressão”, para além de caracterizar uma condição, é uma categoria central no discurso de pessoas, grupos e povos vítimas de heterofobia, nomeadamente, desempregados, trabalhadores, mulheres, não-brancos, homossexuais, lésbicas, imigrantes, etc. Sendo uma expressão praticamente ausente no discurso político dominante, o uso do termo por parte dos movimentos sociais contra-hegemónicos e dos grupos oprimidos significa uma denúncia contra as estruturas políticas, económicas, sociais e culturais forjadoras da opressão. É precisamente partindo dos contextos de luta dos grupos oprimidos que, por exemplo, Iris Marion Young agrega a opressão em cinco modalidades: exploração, marginalização, violência, desempoderamento e imperialismo cultural. Passamos a descrever, de forma necessariamente esquemática, as duas primeiras modalidades.


A teoria marxista desmistifica os sentidos da exploração, ao identificá-la como resultado de uma relação estrutural de desigualdade, entre detentores dos meios de produção e os demais cidadãos e cidadãs que, quando podem, vendem a sua força de trabalho, em regra ao preço que lhes é imposto de forma unilateral e liminar. Funcional a esta relação, um conjunto de instituições e de regras definem o que conta como trabalho, quem pode trabalhar, para quem se pode trabalhar e em que condições, e como deve o trabalho ser compensado. Reconhecendo que o capitalismo se desdobra em múltiplas e complexas formas de exploração, a compra e venda da força de trabalho estará articulada com outras formas de dominação como, por exemplo, a segregação sexual e racial.


A marginalização é o processo através do qual largas camadas de cidadãos e cidadãs são não só condenadas a situar-se fora do sistema de produção capitalista, mas também impedidos de fazer parte da vida social comum. Nalguns casos, a marginalização resulta na reprodução de condições sub-humanas extremas e, no limite, significa a condenação à morte aos indesejados, descartados e apagados da sociedade.


O que nos parece importante realçar no questionamento sobre os sentidos da opressão é a necessidade de desvendar os contextos históricos em que a mesma se produz e reproduz, tendo presente que haverá interseções entre as diferentes formas de opressão. Tão importante quanto isso, será perceber em que medida o (re)conhecimento das formas de opressão – no sentido de identificação e denúncia das estruturas sociais que as sustentam – poderá ser um dos pontos de partida para construção de outros mundos onde a verdadeira humanidade é possível.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Harvey, Jean (2010), “Victims, Resistance and Civilized Oppression”, Journal of Social Philosophy, 41(1), 13-27.
Harvey, Jean (2015), Civilized Oppression and Moral Relations. Victims, Fallibility and Moral Community. London: Palgrave Macmillan.
Memmi, Albert (1993), O Racismo. Lisboa: Caminho.
Young, Iris Marion (1990), Justice and the Politics of Difference. Princeton, New Jersey: Princeton University Press.

 

André Cristiano José é advogado, licenciado em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É mestrado em sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Programa Pós-colonialismos e Cidadania Global). Foi investigador do Centro de Formação Jurídica e Judiciária de Moçambique.

 

Como citar

José, André Cristiano (2019), "Opressão", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=2&entry=24455. ISBN: 978-989-8847-08-9