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No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

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Esquerdas

Miguel Cardina
Publicado em 2019-04-01

Tomando de empréstimo uma frase geralmente atribuída ao filósofo norte-americano Fredric Jameson – “hoje é mais difícil imaginar o fim do capitalismo do que o fim do mundo” – poderíamos equacionar o que seria atualmente o duplo desígnio das esquerdas. Por um lado, a tarefa de manter e aprofundar os mecanismos de crítica e de intervenção política que se oponham ao capitalismo e aos diferentes cortejos de desigualdade, opressão e dominação que a partir dele se configuram. Por outro lado, a consciência de que a continuidade dos seres humanos no mundo – e do planeta Terra como habitação humana – convoca e exige uma nova relação com a natureza baseada numa ética do cuidado e na defesa dos bens comuns. A partir dos seus lastros históricos e das lutas concretas desencadeadas, às esquerdas está hoje acometido o amplo desafio de ir sabendo articular estes dois desígnios gerais.

 

O alinhamento dos programas político-filosóficos de acordo com os classificativos de “esquerda” e “direita” remonta ao período da revolução francesa. Ao longo do século XIX e XX, a história da esquerda foi feita de debates e roturas intensas, dando assim origem a distintas linhagens políticas. Comunismo, anarquismo e social-democracia vieram a constituir-se como os seus grandes veios históricos, todos eles marcados internamente por vários matizes. Daqui resultou um feixe de teorias e práticas que emanaram do confronto com acontecimentos históricos relevantes, de opções estratégicas e táticas assumidas e de respostas diferenciadas a questões como a articulação entre nação, classe e Estado; a crítica da propriedade e do seu usufruto; a natureza dos sistemas de dominação e os meios de os combater; a relação entre Estado, comunidade e indivíduo; a dinâmica entre partidos e movimentos sociais; ou a visão sobre a modernidade e o progresso.

 

A pluralidade da esquerda deriva das suas histórias concretas e das suas formatações ideológicas, mas também dos seus distintos processos de criação e territorialização. Com efeito, as modalidades de intervenção política são moldadas pelas formações sociais e pelos quadros jurídico-constitucionais nos quais operam, o que nos deverá fazer desconfiar de receituários abstratos sobre o que deva ser uma “política de esquerda”. O diálogo entre as esquerdas – não só entre as diferentes linhagens da esquerda, mas entre as suas distintas expressões territorializadas – é condição essencial para a formulação de alternativas à expansão capitalista e à imposição da hegemonia neoliberal.

 

Observando hoje a situação das esquerdas do Sul da Europa e da América Latina, Boaventura de Sousa Santos faz notar a importância desse diálogo. A essas esquerdas estaria acometido, nos dias de hoje, o mesmo desafio genérico de consolidar duas medidas, o alargamento da participação e do controlo democrático (constituição) e a construção de novos sentidos sobre o público, o social e o político que desnaturalizem o senso comum neoliberal (hegemonia). Partindo de contextos geopolíticos diferentes, as respostas seriam também distintas, e o desígnio comparativo aliás poderia ser alargado para outras latitudes. De qualquer modo, o essencial é que subsistem lógicas de aprendizagem recíproca por aprofundar, cuja intensificação, neste caso específico, permitiria ultrapassar bloqueios e estimular potencialidades, associadas ao alargamento da noção de democracia, num quadro de constrangimento externos, à ativação de pactos de governo entre as esquerdas nas quais se conjuga negociação e estipulação de “linhas vermelhas”, o tratamento democrático da questão da plurinacionalidade e a defesa irredutível dos direitos sociais sempre que estes estiverem assegurados e em perigo.

 

No fundo, as esquerdas encontram-se unidas numa mesma aspiração, determinada pelo postulado de que é possível e necessário sustentar modos de organização social assentes na igualdade, na solidariedade e na cooperação. Eles seriam, em última análise, capazes de alavancar processos de resistência à expansão do capitalismo e das formas de dominação dele derivadas e, simultaneamente, de combater as pressões estruturais que bloqueiam a autorrealização dos sujeitos. Para isso, as esquerdas precisam de mobilizar a história e a memória dos seus combates mas também fazer o seu exame crítico sobre os seus (in)sucessos e limitações. Isso passa por refletir sobre o estalinismo e o socialismo real, sobre a conversão da social-democracia ao social-liberalismo e a dificuldade em alimentar eficazes e duradouros processos contra-hegemónicos. Mas passa também por perceber que a esquerda nos dias de hoje só será o nome de um projeto emancipatório se souber ser crítica do capitalismo e da predação da natureza, do patriarcado e das diferentes opressões sustentadas na diferença, do colonialismo e dos seus fundos legados.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Grosfoguel, Ramón (2009), “Izquierdas e Izquierdas Otras: entre el proyecto de la izquierda eurocéntrica y el proyecto transmoderno de las nuevas izquierdas descoloniales”, Tabula Rasa, n.º 11, pp. 9-29.

Santos, Boaventura de Sousa (2015), “A esquerda do futuro: uma sociologia das emergências”, Sul 21, http://www.sul21.com.br/jornal/a-esquerda-do-futuro-uma-sociologia-das-emergencias-por-boaventura-de-sousa-santos/

Soeiro, José e Cardina, Miguel (2012), “Socialismo e Alternativa: seis hipóteses em busca de um ator”, Vírus, n.º 2, pp. 6-12.

 


Miguel Cardina é Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). Coordenador do projeto CROME – Memórias Cruzadas, Políticas do Silêncio. As guerras coloniais e de libertação em tempos pós-colonial, financiado pelo European Research Council (StG-ERC-715593).

 

Como citar

Cardina, Miguel (2019), "Esquerdas", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24281. ISBN: 978-989-8847-08-9