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Maria Irene Ramalho

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Pobreza

Pedro Hespanha
Publicado em 2019-04-01

Longe de se identificarem com qualquer atributo natural (acaso de nascimento ou incapacidade pessoal), as situações de pobreza são marcadamente um produto social, no sentido em que resultam de processos históricos de distribuição desigual dos recursos e da riqueza produzida. Por essa razão, a questão da pobreza está intimamente ligada à questão da desigualdade social e uma e outra só podem ser compreendidas e atacadas na sua origem.


Uma teoria crítica da pobreza e da desigualdade terá, assim, de valorizar mais o conhecimento e a intelegibilidade desses processos, do que propriamente a construção de conceitos pretensamente universais, de indicadores mensuráveis e comparáveis ou de medidas de política aptas a erradicá-las.


Centrando-nos na atual fase do capitalismo global, a evidência mostra que, apesar da intensificação dos fluxos mundiais de capital e de trabalho, da extensão dos mercados, da globalização das políticas e dos progressos na tecnologia e nas comunicações, as oportunidades para melhorar os padrões de vida são cada vez mais inacessíveis à maioria da população mundial e a pobreza, tanto como as desigualdades, não cessa de aumentar.


E isto é tanto verdade para os países do Sul, como para os do Norte. A tendência para uma progressiva aproximação da estrutura social dos países industrializa¬dos à estrutura polarizada dos países do Sul, caracterizados ainda pela diversidade, indistinção e insegurança, é um dos traços que Ulrich Beck apontou como distintivo do capitalismo global contemporâneo (Beck, 2000).


Fortemente associado à produção da incerteza e do risco está o fenómeno da globalização. Na esfera económica, a globalização leva a que o capital perca a sua vinculação nacional e, por isso, possa furtar-se ao poder regulatório dos estados nacionais e à pressão dos sindicatos nacionais e, assim, proporcionar às empresas que operam à escala global condições mais vantajosas quer em termos de custos salariais, quer de encargos fiscais. Do lado do trabalho, a globalização não só vem promover a livre deslocação dos trabalhadores para onde existam oportunidades de emprego como leva os capitais a buscar força de trabalho barata em todos os cantos do mundo (Dupas, 1999: 21).


A relação entre o capitalismo globalizado e a miséria do mundo tem sido objecto de abundante literatura e de não menos evidência empírica. Para Michel Husson, a miséria do capitalismo deve-se ao facto de este ter perdido completamente a sua legitimidade como um fator de progresso universal. Centrado num núcleo duro, funcional e conforme às suas exigências de maximização do lucro, o capitalismo põe de parte aqueles sectores que não consegue submeter à sua lógica, mesmo que neles existam gritantes necessidades para satisfazer: é preferível não produzir, do que produzir sem lucro, recorda Husson. Em consequência, os setores menos competitivos das economias – como é o caso da pequena produção agrícola familiar em muitas partes do mundo – são paulatinamente neutralizados. E quando, por efeito da baixa de preços dos produtos globais, o capitalismo incorpora novos mercados que estavam à margem do consumo por falta de poder de compra (por exemplo, na África e na América Latina onde se concentra a população mais pobre), fá-lo sobretudo através da expansão de consumos não essenciais. Assim e ainda segundo o mesmo autor, o capitalismo funciona como uma enorme máquina de exclusão exercendo uma triagem sistemática entre as camadas sociais e as zonas geográficas para rejeitar tudo o que não pode integrar na sua lógica, designadamente o desemprego e as exclusões nos países ricos e o crescimento do sector informal nos países pobres.


O processo de marginalização de amplas camadas da população, que apresenta um particular dramatismo no caso dos países da periferia, tornou-se igualmente visível nos países do centro, sobretudo a partir da ofensiva neoliberal dos anos 80 e da financiarização das economias que, ao abalar a soberania económica e política dos Estados, arrastaram muitos países para uma grave crise e alguns, mesmo, para uma submissão a processos de ajustamento estrutural, semelhantes aos ocorridos algumas décadas antes naqueles outros países. As manifestações mais visíveis dessa crise são o aumento do desemprego de longa duração e a generalização de empregos precários, dois fenómenos que são responsáveis pelas crescentes desigualdades sociais e pela miséria crónica de uma parte significativa da população.


Saldando-se, em geral, por um agravamento do desemprego formal e pela flexibilização e insegurança do trabalho, o sistema de emprego que se está a instituir através do novo modelo global de produção representa um agravamento do risco social e da exclusão para um crescente número de trabalhadores espalhados por todo o espaço mundial. “Enquanto seleciona, reduz, qualifica – e, portanto, exclui – no topo, a nova lógica das cadeias inclui na base trabalhadores com salários baixos e contratos flexíveis, quando não informais” (Dupas, ibid.: 71).

 

Referências e sugestões adicionais de leitura: 
Beck, Ulrich (2000), The Brave New World of Work. Cambridge: Polity Press.
Dupas, Gilberto (1999), Economia Global e Exclusão Social. Pobreza, Emprego, Estado e o Futuro do Capitalismo. São Paulo: Paz e Terra.
Hespanha, Pedro (2001), “Desigualdades e exclusão num mundo globalizado. Novos problemas e novos desafios para a teoria social”, in Boaventura de Sousa Santos (org.), Globalização: fatalidade ou utopia? Porto: Afrontamento, 163-196.
Therborn, Göran (2015), La Desigualdad Mata. Madrid: Alianza Editorial.

 

Pedro Hespanha é Sociólogo. Professor Jubilado da Faculdade de Economia de Coimbra e Membro Fundador do Centro de Estudos Sociais. Tem investigado e publicado nas áreas dos estudos rurais, políticas sociais, sociologia da pobreza e exclusão social. Coordena o Grupo de Estudos sobre Economia Solidária (ECOSOL/CES)

 

Como citar

Hespanha, Pedro (2019), "Pobreza", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24484. ISBN: 978-989-8847-08-9