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Teologia

Teresa Toldy
Publicado em 2019-04-01

Um dos principais desafios que se colocam à teologia, na perspetiva de Enrique Dussel (2013), é o da sua “descolonização”. Esta entende-se como parte da descolonização do processo de conhecer, isto é, como uma compreensão da realidade a partir daquilo que as formas de conhecimento ocidentais consideram ser as periferias, o não-saber – tudo aquilo que, na perspetiva de Dussel está à margem do “poder cultural, racional, falocrático, político, económico ou militar” (2013: 30). “Descolonizar” a teologia significa, pois, desconstruir criticamente modos de produção teológica assentes em categorias de pensamento dicotómicas e subalternizadoras de formas de conhecimento (incluindo teológico) fora do cânone epistemológico ocidental, ouvindo as vozes que produzem outras teologias.


Para que se produza uma descolonização da teologia não bastam aproximações sumativas a “outras formas” de produzir conhecimento teológico, isto é, uma descrição de “outros modos de pensar” teológico, numa perspetiva com dificuldade de escapar à tentação “inclusivista” (isto é, à ideia de que as religiões convergem para a forma mais perfeita de religião – o cristianismo), ou à facilidade “descritivista” (isto é, ao mero elenco das diversas formas de religião). A perspetiva inclusivista corre o risco de reduzir a um denominador comum, definido pelo autor do discurso, uma variedade de pensamentos não redutível ao mesmo. A perspetiva descritivista, por seu turno, parece contentar-se em apropriar-se do património religioso alheio, convicta de que lhe dá voz e de que, ao fazê-lo, está a dar voz “aos subalternizados”. Porém, continuam a não ser “os subalternizados” a decidir acerca da sua própria voz.


O desafio da descolonização da teologia passará decisivamente pela discussão e pela desconstrução da pretensão universalista, “o síndrome do Ocidente”, segundo Panikkar (1990: 98) (nas suas diversas formas: exclusivista, quando convicta da existência de apenas uma teologia ou da teologia de uma religião, com validade universal; inclusivista, quando interpreta a variedade como prenúncio da religião com validade universal; e descritivista, quando confunde o universal com a soma de todas as partes) subjacente ao discurso sobre (os) deus(es) ou sobre o religioso. O caminho da interculturalidade na teologia dificilmente passará pela substituição das categorias hegemónicas das teologias ocidentais tradicionais (aniquiladoras da diversidade, por via da reivindicação de universalidade) por categorias igualmente hegemónicas de teologias que, não conseguindo abdicar do seu horizonte de referência ocidental, trocam as velhas categorias por outras tantas supostamente universalizantes, mas igualmente “domesticadoras” da diversidade do mundo.


Neste sentido, dir-se-ia que uma teologia descolonizada é uma teologia apostada realmente em passar de uma teologia “multicultural” (de um pluralismo constituído por unidades de sentido paralelas) para uma teologia “intercultural” e “interreligiosa”. Esta passagem implica o reconhecimento do caráter situado de todo o discurso – incluindo do discurso teológico, renunciando à pretensão de uma linguagem universal abstrata, por um lado, e à redução do diferente ao mesmo, por outro. Raimon Panikkar propõe o caminho de uma hermenêutica diatópica, isto é, uma hermenêutica que procura “compreender o conteúdo das diversas culturas que não têm relação histórica cultural ou direta umas com as outras.” (1999: 27). O facto de pertencerem a contextos culturais díspares, faz com que seja necessário “criar os instrumentos da compreensão no próprio encontro” (idem), isto é, “não se pode – não se deve – assumir a priori uma linguagem comum” (idem). Esta deve construir-se no próprio processo dialógico. Panikkar recorre à noção de “homeomorfismo” para explicar este processo, que não consiste numa mera comparação de conceitos ou tradições, mas sim numa “correlação entre pontos de dois sistemas diferentes, de tal forma que a um ponto de um sistema corresponde um ponto no outro.” (ibidem: 67). Não se trata de uma analogia, mas sim do reconhecimento de que noções diferentes “desempenham papéis equivalentes”, “ocupam lugares homólogos nos seus respetivos sistemas” (idem): por exemplo, o conceito de Brahman pode considerar-se homólogo do conceito de Yavé. Eles não são traduzíveis mutuamente. Não têm relação direta, mas, no universo religioso de cada uma das religiões, eles desempenham um papel semelhante.


A elaboração de teologias interculturais e interreligiosas exige, pois, o reconhecimento de que “a diversidade epistemológica do mundo é potencialmente infinita e que cada saber só muito limitadamente tem conhecimento dela” (Santos, 2009: 467) – incluindo o saber teológico. Reconhecer o carácter incompleto de todos os saberes teológicos será abrir a porta à “ecologia dos saberes”, já que “o saber só existe como pluralidade de saberes” (ibidem: 468) – o saber teológico só existe como pluralidade de teologias.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Dussel, Enrique (2013), “Descolonización epistemológica de la teología”, Concilium: Revista internacional de teología, 350, 23-34.
Panikkar, Raimon (1999), The Intrareligious Dialogue. New Jersey: Paulist Press.
Panikkar, Raimon (1990), Sobre el diálogo intercultural. Salamanca: Ed. San Esteban.
Santos, Boaventura de Sousa (2009), “Um Ocidente Não-Ocidentalista?: a filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal”, in Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (orgs.), Epistemologias do Sul. Coimbra: Ed. Almedina/CES, 23-71.

 

Teresa Toldy é teóloga, doutorada pela Philosophisch-theologische Hochschule Sankt-Georgen (Frankfurt), pós-doutorada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Professora Associada com Agregação na Universidade Fernando Pessoa, investigadora do CES, onde co-coordena o Observatório da Religião no Espaço Público.

 

Como citar

Toldy, Teresa (2019), "Teologia", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24562. ISBN: 978-989-8847-08-9