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Wachachik Mama

Alice Cruz
Publicado em 2019-04-01

Nome kichwa, cuja tradução literal é “sábia que faz parir”, significa parteira nas comunidades kichwa dos Andes e Amazónia Ecuatorianos. As wachachik Mamakuna (plural) cuidam as mulheres gestantes, parturientes e puérperas no pré-parto, parto e pós-parto, muito embora a isso não se constrinjam, dado que tal lógica de especialização seria estranha à medicina kichwa.


Ditos conhecimentos foram sujeitos ao epistemicídio e à criminalização na colónia e na república. A descriminalização das medicinas indígenas data de 1998 e resultou da luta do movimento indígena, organizado em 1986 na Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE). Reivindicando o direito à medicina própria, o último logrou, após os levantamentos de 1990, o reconhecimento dos sistemas de conhecimento e de medicina ancestrais nas constituições de 1998 e 2008. Porém, a contemporaneidade não se isenta de ameaças ao seu saber, reinventando-se o epistemicídio na medicalização da sua práctica e na apropriação dos seus conhecimentos.


A medicina kichwa, na qual se inserem as wachachik Mamakuna a par com os Yachak e outros sanadores, nutre-se de uma sabedoria (que alguns apelidaram de filosofia andina e que outros poderiam identificar como epistemologia, muito embora tais noções sejam externas ao léxico indígena) alicerçada nos princípios de relacionalidade, correspondência, complementaridade e reciprocidade. Ensinando que a Pachamama (natureza) transcende a sua fisicalidade, sendo a mãe geradora de toda a vida, e que tudo (natureza, humanos, antepassados, divindades) que habita as diferentes pachas é vivente e, como tal, sente e pensa. Anunciando uma ontologia substanciada pela inter-relacionalidade, avisa que o humano apenas existe em relação com o todo de que é parte e não centro e que a sua integridade se compõe de, não apenas um, mas vários corpos interdependentes. Os mesmos princípios organizam as concepções de saúde, doença e subsequentes abordagens terapêuticas.


Ausenta-se do kichwa uma palavra ou termo equivalente à noção de saúde. O significante mais aproximado é sumak kawsay (oficialmente traduzido como bom viver mas cujo sentido é felicidade) que amplia o significado de saúde a um bem-estar que abrange a totalidade da existência, baseando-se numa inter-relacionalidade harmoniosa. A saúde do humano depende das suas relações de reciprocidade com a natureza, família, comunidade, antepassados e divindades, bem como da harmonia entre os seus diferentes corpos. A doença resulta de um desequilíbrio nas mesmas relações, com etiologias que perpassam causas espirituais, naturais e pessoais, mas que denunciam sempre uma desarmonia e/ou conflito. Concomitantemente, o diagnóstico é em grande parte anamnéstico e, além de uma escuta integral do indivíduo, faz uso de técnicas como a leitura do pulso ou do cuy. Finalmente, o processo terapêutico caracteriza-se por privilegiar as causas sobre os sintomas e por almejar não somente a cura, mas sobretudo sanar o conflito que originou a doença. As suas tecnologias (que vão desde plantas a rituais) descartam tratamentos padronizados para cada enfermidade, adequando-se a cada caso e aos recursos naturais de cada comunidade, assumindo, ainda, feições próprias a cada praticante, dado que a transmissão de conhecimentos caminha a par com a sua produção, alimentando-se da observação, vivência e experimentação.


Assim se compreende que, muitas vezes, a conversão em wachachik mama se dê após o próprio parto, apesar de a aprendizagem remontar à infância no seio das relações familiares e continuar pela vida fora, perante novos problemas que demandam inovação nas respostas. Problemas que, por vezes, não encontram solução na biomedicina, como o posicionamento do feto, o qual é respondido com grande sucesso pelas wachachik Mamakuna. De igual modo, sanam desordens não reconhecidas pela biomedicina, como o espanto que conduz à perda da força vital ou ausência do espírito, terminando, muitas vezes, por curar nosologias biomédicas. Mas a sua acção desintrinca, ainda, desigualdades de género no aconselhamento aos casais ou no cuidado do corpo feminino após o parto com técnicas como o encaderamiento.


Em suma, dão resposta a problemas físicos, espirituais, familiares e sociais, através de uma práctica não remunerada com assento na reciprocidade que, ao mesmo tempo que é alvo de tentativas de regulação, higienização e medicalização, oferece alternativas à violência obstétrica denunciada pelo movimento global de humanização do parto, desfazendo o parto como evento médico e salientando o seu perfil afectivo, familiar e social, libertando o corpo da mulher da posição horizontal para um parto em livre posição e praticando uma ética de cuidado que devolve autonomia à mulher e restaura a dignidade e amorosidade do nascimento.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Llasag Férnandez, Raúl (2011), “Derechos de la naturaleza: una mirada desde la filosofía indígena y la Constitución”, in Carlos Espinosa Gallegos, Camilo Pérez Férnandez (orgs.), Los derechos de la naturaleza y la naturaleza de sus derechos. Quito: Ministerio de Justicia, Derechos Humanos y Cultos, 75-92.
Mideros Morales, Raúl Eduardo (2010), “Parir y nacer sin prisas ni rutinas: vigencia de la partería tradicional andina en el siglo XXI”, in Plutarco Naranjo Vargas (ed.), Etnomedicina y etnobotánica: avances en la investigación. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar Abya Ayla, 73-80.

 

Alice Cruz é antropóloga e doutorada em Sociologia. É Relatora Especial das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as pessoas Afetadas pela Lepra e seus Familiares. Foi professora na Universidade Andina Simón Bolívar (Equador) e investigadora do Projeto ALICE do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

 

Como citar

Cruz, Alice (2019), "Wachachik Mama", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24584. ISBN: 978-989-8847-08-9