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Atlântico

Túlio de Souza Muniz
Publicado em 2019-04-01

Conceituar o Atlântico enquanto multiplicidade epistemológica requer cortes ontológicos diversos e simultâneos, por vezes transversais e sobrepostos, desconstruindo narrativas acerca dos 'descobrimentos' numa perspectiva exclusivamente europeia que desconsidera as trajetórias dos povos contatados, subjugados e desterrados, quando não exterminados. Compreender tal complexidade talvez leve a melhor entendimento dos problemas que afetam hoje os oceanos e os mares do mundo.


Corte ontológico e historiográfico: o Atlântico não foi o primeiro caminho oceânico de contatos entre diferentes povos. Nesse quesito, foi antecedido pelo Índico, nos contatos entre asiáticos, árabes e africanos (ver verbete “Oceano Índico”, deste Dicionário). Também as primeiras leituras europeias acerca do Atlântico vêm do que se supunha conhecer do Mundo Índico. Marco Polo (séc. XIII), tributário da escatologia medieva cristã, privilegiou narrativas maravilhosas e fantásticas acerca do Índico em detrimento da compreensão da diversidade cultural, religiosa e arquitetônica da China e da Índia. Também foi de longa duração, no imaginário marítimo europeu, a permanência nas crenças lendárias acerca da Atlântida e do Mediterrâneo e de seus mares adjacentes descritos na Odisseia, de Homero, um percurso pleno de monstros demoníacos os quais, era suposto, habitariam também o Atlântico. Projeções míticas, que embasaram as primeiras narrativas de portugueses e espanhóis diante da exuberância de gentes, da fauna e flora americanas, amostra da tendência europeia de não atribuir o estatuto de civilizações às complexas sociedades indígenas americanas. Somente a partir do contato simultâneo américo-afro-europeu estabeleceu-se o 'Mundo Atlântico' (Thorton, 2004), e dele emergiu uma categoria histórica que se sobreporia às interpretações pautadas pelo exotismo.

 

Corte econômico: o Atlântico foi rota da primeira grande expansão do capital europeu acumulado, e gérmen do capitalismo. Seus principais elementos foram: 1) a adoção do sistema de seguros e o financiamento a juros das navegações e do tráfico pelos banqueiros e cortes abastadas da Europa, e, 2) expropriação de terra através do massacre dos indígenas, e da utilização de mão de obra escrava para exploração e escoamento de produção oriunda da devastação florestal, da plantation e da mineração.

 

Corte multicultural: as diásporas africanas nos 'Atlânticos Negros' (Gilroy, 2011) resultaram de guerras em África, nas quais os europeus se imiscuíram visando obter escravos para o tráfico. A diáspora africana alterou para sempre as subjetividades gestadas pelos inéditos encontros culturais de povos na margem americana do Atlântico. Ressignificadas, as memórias de África e da travessia estão presentes ainda hoje, por exemplo, em cânticos que privilegiam uma narrativa marítima nas festas dos Congado em Minas Gerais, Brasil, não obstante aconteçam a centenas de quilómetros da costa; nos cultos de candomblé na América do Sul, ou da santeria e do vodum, nas Caraíbas.
Resultado da formação do Mundo Atlântico, a dizimação de povos indígenas levou ao extermínio de cerca de 100 milhões de pessoas em cinco séculos. Entretanto, os indígenas americanos existem e resistem, estão presentes seja na toponímia – Aracajú, Maceió, Paramaribo, Manhatan, Ottawa, Toronto, etc. –, seja nas trajetórias de povos litorâneos como Tremembé, Pataxó, Potiguara, entre tantos, seja na prática e repasse dos saberes ancestrais e de estratégias de resistências das populações indígenas ou mestiças, compostas por milhões de pescadores, jangadeiros, caiçaras, marisqueiras, canoeiros, trabalhadoras e trabalhadores do mar.

 

O Atlântico do passado e do presente é parte intrínseca das histórias e das culturas de diversos povos que, em geral, são alijados das discussões formais para definição de políticas de governação dos mares (Muniz, 2014). Daí advém, talvez, o prolongamento do colonialismo no espaço Atlântico (como nas Malvinas / Falklands), e a apropriação, pelo sistema capitalista, de recursos piscatórios e minerais de países do Sul Global (sobremaneira o petróleo). Diante da devastação ambiental, das alterações climáticas, da poluição crescente, da especulação imobiliária, do avanço da indústria do Turismo e da sobrepesca industrial, travam-se as lutas cotidianas das populações piscatórias do Atlântico e dos demais oceanos e mares – inclusive em países europeus, como se percebe na relação histórica e cultural (e problemática) dos portugueses com o espaço oceânico e costeiro (Garrido, 2018).

 

Reinterpretar o papel dos oceanos exige, portanto, alcançar uma compreensão alargada do Atlântico e dos demais territórios marítimos, considerando suas dimensões históricas, econômicas, ecológicas e sociais, por humanas que são.


Referências e sugestões adicionais de leitura:
Garrido, Álvaro (2018), As Pescas em Portugal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Gilroy, Paul (2011), O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora 34. 
Muniz, Túlio de Souza (2014), O ouro do mar. São Paulo: Annablume.
Thorton, John (2004), A África e os africanos na formação do Mundo Atlântico. 1400-1800. São Paulo: Editora Campos.


Túlio de Souza Muniz é professor Adjunto da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Foi professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro Brasileira (UNILAB). Bacharel e Mestre em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Doutor em Pós Colonialismo e Cidadania Global/Sociologia pelo CES, Universidade de Coimbra. É Jornalista Profissional desde 1993.

 

Como citar

Muniz, Túlio de Souza (2019), "Atlântico", Dicionário Alice. Consultado a 20.04.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24602. ISBN: 978-989-8847-08-9