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Bioética

Patrícia Ferreira, Ângela Marques Filipe
Publicado em 2019-04-01

Como definir bioética? A bioética refere-se a uma abordagem normativa assente em quatro princípios consagrados, desde os anos 60, na Declaração de Helsínquia: respeito pela autonomia individual, beneficência, não-maleficência e justiça. Esta abordagem traduz-se em normas orientadoras da conduta profissional (e.g. normas deontológicas) e científica, que se aplicam também à gestão das relações entre pesquisador e participante e/ou entre médico e paciente. Este cânone bioético assenta numa definição biomédica da saúde e traduz-se em práticas bem estabelecidas na investigação e intervenção na medicina, na saúde pública e na saúde global, como a aprovação de estudos científicos e clínicos em comités bioéticos, ou a obtenção de consentimento informado para a recolha de dados e amostras biológicas dos participantes.

 

Enquanto disciplina académica formal, a bioética situa-se no contexto cultural e político das democracias liberais euro-americanas (Das, 1999; Kingori, 2013). A história da bioética assenta em noções universalizantes dos direitos humanos (como ilustra a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO) e prende-se, ao mesmo tempo, com a globalização dos saberes, práticas e infraestruturas das biociências e da medicina, centrados em critérios de validação tecnocientífica, como os aplicados nos ensaios clínicos randomizados. Nas últimas décadas, todavia, temos assistido a inovações neste campo – por exemplo, a partir das lentes teóricas e metodológicas da sociologia e da antropologia médica crítica, que procuram distinguir os princípios e procedimentos bioéticos formais das questões substantivas da ética empírica. A (bio)ética empírica constitui-se como um campo de ação interdisciplinar e transcultural, um movimento intelectual cosmopolita, uma prática social, mais do que apenas uma disciplina (Kingori, 2013). Na prática social da bioética, lidamos com questões empíricas sobre a forma como (i) definimos os conceitos e as dinâmicas de responsabilidade e reciprocidade,  poder e violência, autonomia médica e moral e como (ii) lidamos com o sofrimento, a doença e a vida quotidiana em espaços clínicos enquanto lugares de encontro e presença, mas também de ausência e de assimetrias de poder (por exemplo, entre os especialistas e não-especialistas).

 

Como re-imaginar a bioética? Das epistemologias do Sul, das teorias feministas e pós-coloniais sobre o corpo, da psiquiatria transcultural, assim como das visões críticas da epidemiologia social, da antropologia médica e da medicina comunitária e social, chegam-nos vozes e experiências de diversos lugares do mundo que nos ajudam a ampliar e descolonizar o cânone “bioético” para além dos espaços da biomedicina e dos seus pressupostos técnicos e profissionais. São exemplo as contribuições latino-americanas que, a partir de perspetivas locais, coletivas, e/ou indígenas, propõem uma (bio)ética geográfica e historicamente situada, integradora das diferenças e das subjetividades, sensível às dimensões económicas e ecológicas e promotora de uma reflexão crítica sobre o desenvolvimento desta região.

 

A partir de alguns dos lugares mais pobres do mundo, Paul Farmer e Nicole Campos (2004) propõem uma ressocialização da ética médica que contextualize os dilemas éticos associados à seleção de quem acede às terapias, aos cuidados médicos e a resultados científicos das pesquisas em HIV, malária ou tuberculose. Esta ética, construída a partir “de baixo”, desafia e denuncia, por exemplo, o hiato entre o acesso à saúde em territórios vulnerabilizados, onde eles são escassos ou inexistentes, e as lutas pelo acesso à saúde que se traduzem em decisões de vida ou morte. Esta prática ética implica reflexividade sobre a forma como conduzimos (e pensamos) o “trabalho de campo” antropológico e sociológico nos contextos da saúde pública e global - como nos informam os nossos próprios projetos de pesquisa, nos quais nos confrontamos com a urgência de noções inclusivas e ampliadas da conduta ética como forma de (re)conhecer e escutar o “outro”, bem como a multiplicidade de idiomas da ética em contextos de saúde, incluindo a ética do cuidado. Este sentido ético implica exercermos a arte do cuidado necessária à concretização das possibilidades de uma vida boa quotidiana, para além da bioética (Das, 2009; Povinelli, 2011).

 

Re-imaginar o imperativo (bio)ético a partir desta perspetiva empírica, interdisciplinar e transcultural implica o reconhecimento de que não há uma bioética universal, mas sim práticas éticas plurais, situadas em contextos sociais, históricos e políticos que intersectam o global e o local e que assentam no reconhecimento de diferentes modos de vida, no diálogo e pensamento crítico, na ética do cuidado, seja no encontro clínico, no “campo” de trabalho etnográfico, ou nos espaços de mobilização social.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Das, Veena (1999), “Public Good, Ethics, and Everyday Life: Beyond the Boundaries of Bioethics”, Daedelus, Vol. 128(4): 99–133.

Farmer, Paul e Campos, Nicole (2004), “Rethinking medical ethics: A view from below”, Developing World Bioethics, Vol. 4(1): 17–41.

Kingori, Patricia (2013), “Experiencing everyday ethics in context: frontline data collectors perspectives and practices of bioethics”, Social Science & Medicine, Vol. 98: 361–370.

Povinelli, Elizabeth (2011), Economies of Abandonment: Social Belonging and Endurance in Late Liberalism. Durham: Duke University Press.

 

 

Patrícia Ferreira é doutoranda em “Governação, Conhecimento e Inovação” e investigadora júnior do Centro de Estudos Sociais, onde tem vindo a desenvolver investigação no campo da epidemiologia e promoção da saúde, e integrado projetos de envolvimento da ciência com a sociedade.

 

Angela M. Filipe é socióloga, mestrada pela Universidade de Coimbra, doutorada pelo King's College London, e investigadora na Universidade McGill. O seu trabalho explora as dimensões sociais, éticas e políticas da medicina, da saúde (mental e global), e das relações entre ciência e sociedade duma perspetiva etnográfica e interdisciplinar.

 

 

Como citar

Ferreira, Patrícia; Filipe, Ângela Marques (2019), "Bioética", Dicionário Alice. Consultado a 20.04.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24616. ISBN: 978-989-8847-08-9