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Patriarcado

Luciana Moreira
Publicado em 2019-05-30

Patriarcado é o nome comummente atribuído a um sistema social baseado numa estrutura de relações hierarquicamente ordenadas entre os géneros, instituído (e combatido) em grande parte das culturas e sociedades contemporâneas. No sistema patriarcal os homens experimentam um privilégio estrutural que lhes atribui uma posição de poder quer na esfera familiar, como chefe formal da família, quer na esfera pública, assumindo lugares de preponderância a nível político, económico e social. Essas posições de poder e privilégio são de ordem variável, e as consequências dessa ordem nem sempre são previsíveis. Num estudo sobre violência contra as mulheres, Rita Segato aponta que o patriarcado é ao mesmo tempo uma norma instituída e um projeto de autorreprodução, através de uma série de mecanismos que garantem a sujeição das mulheres e pessoas que não encaixam na lógica da oposição complementar heterossexual homem/mulher. Entender o patriarcado e a sua atuação no campo simbólico implica uma “escuta” demorada das relações de poder a ele subjacentes, bem como das formulações discursivas e das representações que o veiculam (Segato, 2003: 14).


Esta atribuição de diferentes valores, consoante o género, às figuras que se movimentam no xadrez social está intimamente ligada à correlação que existe entre patriarcado e a gestão das relações entre homem e mulher, principalmente no que toca à sexualidade. Efetivamente, o patriarcado baseia-se no que Judith Butler (no seguimento do trabalho de autoras como Gayle Rubin, Adrienne Rich ou Monique Wittig) denominou de “matriz heterossexual” (1990). O patriarcado não só oprime as mulheres em geral, como controla os afetos, a sexualidade, as possíveis experiências de fluidez e de trânsito que possam existir para além do contrato heterossexual e de vivência de género fora da cisnormatividade (pessoa cis é aquela que se identifica com o género que lhe foi atribuído à nascença).


Várias/os autores/as têm tentado traçar a história do domínio patriarcal e, embora as suas origens não sejam claras, é consensual que o patriarcado, ou heterocispatriarcado – para enfatizar a dependência desse sistema social à matriz heterosexual – é, acima de tudo, uma construção ideológica cultural que se impôs (ver por exemplo The invention of patriarchy, de Gerda Lerner). Várias autoras feministas, bem como autores/as dos estudos pós-coloniais, têm vindo a apontar o papel preponderante que o colonialismo e o capitalismo tiveram na expansão da ideologia patriarcal. Rita Segato, Maria Lugones, Oyèrónké Oyewúmì, entre outras, denunciaram o facto de a organização hierárquica dos géneros estar corelacionada com o sistema ocidental moderno/colonial, que a impôs nos espaços que tentava colonizar. Assim, a dicotomia homem/mulher e a norma heterossexual subjacentes ao sistema patriarcal serviram também para subjugação de outros povos que não se regiam pelas mesmas normas. Algumas feministas africanas (Nkiru Nzegwu, Oyèrónké Oyewúmì, entre outras) têm questionado a legitimidade da utilização dos conceitos de “patriarcado” e de “mulher” em trabalhos sobre alguns grupos étnicos, antes e após a colonização, questionando a universalidade desses conceitos. O Ocidente, segundo Oyewumi, é um outro cultural, relativamente a África, pelo que as utilizações de conceitos provenientes da norma ocidental deturpam as análises feitas. Para a autora, só se encontra hierarquização dos géneros em determinadas culturas, porque se faz a análise através de uma lente patriarcal ocidental (1997: 20).


Mas num mundo globalizado como o atual, apesar das exceções, o patriarcado foi-se infiltrando profundamente, como parte integrante do que Teresa Cunha chamou “troika da opressão colonialismo-capitalismo-patriarcado” (2015: 164). O modelo patriarcal da família nuclear tradicional tem apoiado o sistema hegemónico, com papéis de género claramente definidos, deixando a mulher relegada à esfera doméstica, à procriação, aos cuidados, por vezes sem um salário próprio. A própria legislação foi durante muito tempo alicerce desse sistema, controlando as mulheres, impedindo-as de votar, de ter propriedade, etc. A imposição do patriarcado atuou, portanto, de ambos os lados da linha abissal (na senda de Boaventura de Sousa Santos), tendo operado no espaço europeu e nos espaços colonizados, oprimindo mulheres e criminalizando quem não se encaixava na norma heterocissexual. Na verdade, muita da legislação que ainda hoje criminaliza a homossexualidade é herança deixada pelas potências colonizadoras. E se Foucault analisou a História da sexualidade (1976 e 1984), as mudanças de paradigma e o disciplinamento dos corpos – fundamentais para entender o paradigma da família nuclear heteronormativa – Silvia Federici explica bem as ligações entre capitalismo, colonização e a subalternização da mulher, no seu livro Caliban e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva (2004), denunciando o modo como o sistema capitalista beneficiava da subordinação das mulheres. Também Teresa Cunha (2015) se debruçou sobre o tema, denunciando a dicotomia hegemónica trabalho produtivo / trabalho reprodutivo, que transforma o trabalho das mulheres em subsidiário.


Voltando a Rita Segato, o patriarcado é então uma “ideologia de género” (2003: 60) que atribui às mulheres e a todas as pessoas que escapam à matriz heterossexual um lugar de subordinação. Ora, se tanto a linguagem como as representações sociais e mediáticas assumem um papel importante na manutenção do sistema patriarcal, será também através de uma mudança das mesmas que se poderá superar esse sistema e avançar para uma estrutura social mais igualitária.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Butler, Judith (1990), Gender Trouble. Feminism and the subversion of identity. New York/ London: Routledge.
Cunha, Teresa (2015), Women inPower Women: outras economias criadas e lideradas por mulheres no sul não-imperial. Buenos Aires: CLACSO.
Oyewúmì, Oyèrónké (1997), The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis/ London: University of Minnesota Press.
Segato, Rita Laura (2003), Las estructuras elementales de la violencia: ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes.

 

Luciana Moreira é investigadora júnior do Centro de Estudos Sociais e aluna do programa de doutoramento em “Human Rights and Contemporary Societies” (CES/III-UC). É pós-graduada em Pós-colonialismos e em Estudos Literários e Culturais. É ativista dos movimentos feministas e pela diversidade sexo-genérica.

 

Como citar

Moreira, Luciana (2019), "Patriarcado", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=25549. ISBN: 978-989-8847-08-9