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Ecofeminismo

Luísa de Pinho Valle
Publicado em 2019-04-01

O ecofeminismo é um movimento social e acadêmico que procura compreender e realçar as articulações e as simetrias entre a exploração do que se convencionou chamar de natureza e a dominação de seres que se pensam e se representam como mulheres. 
O ecofeminismo não tem uma corrente homogênea de pensamento. O movimento ecofeminista nasceu na década de 70 do século XX, da confluência das lutas ecológicas e feministas dos movimentos políticos antinucleares, antimilitares, contra os resíduos tóxicos, e pela libertação dos corpos das mulheres. Hoje o ecofeminismo é plural, partilha vozes críticas e diversas que proporcionam olhares múltiplos para as realidades do mundo, mas convergem na necessidade de compartilhamento da vida humana e não-humana no planeta (Valle, 2017). Inclui diferentes perspectivas e designações tais como: ‘ecofeminismo clássico’; ‘ecofeminismo espiritualista’; ‘ecofeminismo construtivista’; ecofeminismo pós-colonial’; dentre outras denominações que procedem de distintos contextos vitais e de fontes de inspiração feminista variada (anarquista, radical, socialista, ecologista, decolonial, popular, comunitária). Na sua diversidade interna, porém, os ecofeminismos defendem a indivisibilidade e interdependência da vida em todas as suas manifestações/formas e que a dignidade, a justiça cognitiva e uma ética socioeconômica e política passa pela luta política antipatriarcal.


Os diversos ecofeminismos reconhecem no racionalismo instrumental um caráter androcêntrico e antropocêntrico predominante que procede a uma dupla destituição ontológica: desiguala os seres que se pensam como mulheres dos seres que se pensam como homens; e entre estas e estes e os seres não-humanos. A monocultura mental, imposta pelo sexismo epistêmico, foi estendida à terra reduzindo esta à categoria de natureza, ou seja, alguma coisa exterior e separada do social e das comunidades humanas (Shiva, 2013). Esta desigualdade essencial construída é que tem possibilitado a divisão abissal do mundo (Santos, 2018) entre espaço metropolitano que explora e domina e o meio colonial que é dominado e pode ser despojado e até, destruído. Tal como às mulheres foi atribuído o estatuto de segundo sexo, passivo e à disposição dos homens, pensados como medida de todas as coisas, a ascensão do patriarcado capitalista, que está na base do colonialismo moderno, forjou a racionalidade para a qual também a natureza é um recurso que pode ser explorado para gerar a acumulação de riqueza. Hoje em dia, a experiência do mundo é marcada por ciclos de dominação e exploração extrativista cada vez mais violenta e em larga escala. Esta realidade reforça os abismos criados entre vida e economia, entre o trabalho e os modos de vida e entre as mulheres e os homens. A economia corporativa transnacional, fundada na ideia de crescimento ilimitado e acumulação do capital a qualquer custo, ressignificou a cultura moderna numa economia de guerra permanente contra o planeta e os povos. Vivemos hoje em pleno eco-apartheid, afirma Vandana Shiva (2013).


Todavia, para além do pensamento hegemônico as práticas ecofeministas significam pedagogias que confirmam que as experiências presentes no mundo excedem, em muito, a experiência patriarcal-capitalista-colonial do mundo (Cunha, 2011; Santos, 2018). O nosso mundo é complexo e plural e a interdependência da vida vai muito além das relações sociais, políticas e econômicas formatadas pela racionalidade patriarcal-capitalista-colonial hegemônica atual. O reconhecimento deste pluriverso da vida abre espaço à diversidade de conhecimentos e práticas presentes em muitas experiências que estão operativas no planeta que abraçam racionalidades integradoras da coexistência humana e não-humana. Neste sentido, o ecofeminismo também afirma que a responsabilidade pela vida tem que ser coletivamente compartilhada. Os pensamentos ecofeministas chamam à atenção para a necessidade crucial de articular sempre prática e teoria assim como vida com conhecimento, num mundo que é pluriversal, habitado e suportado por seres diferenciados.


Por isso, pode-se falar de pedagogias ecofeministas, ou seja, uma busca intencionalizada para criar um conjunto de condições e metodologias que permitam a transferabilidade e a aplicabilidade de conhecimentos concretos.  As pedagogias ecofeministas traduzem ações políticas, críticas e reflexivas, que enfrentam as incertezas e os riscos da vida desde uma racionalidade criativa e contextualizada. Isso significa desenvolver relações inconformadas, imaginativas, para as quais a diversidade do mundo e a multiplicidade de conhecimentos disponíveis sejam forças capazes de disseminar outras racionalidades, avessas à instrumentalidade da razão moderna ocidental. Na base do pensamento ecofeminista está, pois, uma racionalidade prático-transformadora. Esta congrega mulheres e homens na árdua tarefa de realizarem nas ações cotidianas um exercício equilibrado de criação, formação e expansão de saberes, constituído em polirracionalidades para as quais o ambiente não é o entorno onde os seres humanos vivem, mas a matriz pluriversal e vital sem a qual a existência humana não seria possível e não teria sentido.


Referências e sugestões adicionais de leitura:
Cunha, Teresa (org.) (2011), Ensaios pela democracia. Justiça, dignidade e bem-viver. Porto: Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa (2018), The End of the Cognitive Empire. The Coming of Age of Epistemologies of the South. Durham and London: Duke University Press.  
Shiva, Vandana (2013), Making Peace with the Earth. London: Pluto Press.
Valle, Luísa de Pinho (2017), “El ecofeminismo como propulsor de la expansión de la racionalidad ambiental”, Ecología Política, 54, 28-36. Tradução de Claudia Jana Sinibaldi Bento.

 

Luísa de Pinho Valle é doutoranda em Democracia no Século XXI, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É graduada em direito (USU/RJ-Brasil), mestra em direito (UnB-Brasil) e em ciências sociais e jurídicas (UPO-Espanha).

 

Como citar

Valle, Luísa de Pinho (2019), "Ecofeminismo", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24270&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9