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Itinerâncias

Fabrice Schurmans
Publicado em 2019-04-01

Itinerâncias, de itiner[ante] + -ância, “qualidade de itinerante”, do latim itinerans, -antis, part. pres. de itinerare, viajar. O plural aponta para a polissemia do conceito: aqui a deslocação significa tanto a ação física, concreta, como as suas consequências, reais e simbólicas, para o/a viajante. O sujeito itinerante desloca-se por toda uma série de razões e nisso a noção apela a outras, tais como migração, diáspora, nomadismo. James Clifford (1997) entende precisamente a viagem no sentido mais alargado – emigrações, deslocações forçadas, diásporas, zonas de contacto, quer dizer tantas itinerâncias entre as fronteiras e as culturas onde a tradução, em todos os sentidos do termo, desempenha uma função essencial.

 

Os intelectuais itinerantes provenientes do Sul global pensaram a relação do sujeito à deslocação bem como as suas consequências ao nível individual e coletivo. Provenientes de países antes colonizados, conscientes da origem colonial das desordens e desequilíbrios internacionais, forçados a abandonar um lugar por causa da guerra ou da ditadura, são, sem dúvida, os melhor colocados para definir as itinerâncias e os seus efeitos. V.Y. Mudimbe, paradigma possível, diria após uma dezena de anos nos Estados Unidos: “Não sou de lugar nenhum e sinto-me de toda a parte. O nomadismo terá sido – desde quando? – o meu destino e o sinal da minha vocação.” Tal não significa obviamente que a itinerância surgiu apenas no contexto pós-colonial ou que constitui uma característica intrínseca da condição pós-colonial. Achille Mbembe, outro paradigma do intelectual da diáspora, salientou o facto essencial de que a fluidez, o movimento, a circulação existem desde há muito no seio das sociedades africanas. Retoma a noção de afropolitanismo, outra forma de itinerância, a partir da África a fim de se livrar de todos os essencialismos (e.g. nativismo, negritude) e de sublinhar a importância da “dispersão” e do movimento: “a história cultural do continente não se compreende fora do paradigma da itinerância, da mobilidade e da deslocação.”

 

Não é de estranhar neste contexto que as teorias pós-coloniais oriundas dos mundos atlânticos recorram à deslocação, à viagem, às itinerâncias a fim de abordar os fenómenos culturais híbridos por elas gerados. Gilroy viu na imagem dos navios em movimento, o símbolo de algo mais vasto, remetendo a uma relação diferente com a identidade, uma “rhizomorphic, fractal structure of the transcultural, international formation”. A imagem do barco é de facto apelativa e remete para múltiplas itinerâncias: “Ships immediately focus attention on the middle passage, on the various projects for redemptive return to an African homeland, on the circulation of ideas and activists as well as the movement of key cultural and political artifacts: tracts, books, gramophone records, and choirs.” Fala a este propósito de «transnational black Atlantic creativity», o que por sua vez questiona a homogeneidade do Estado-nação. Vê-se claramente que a noção de itinerância se aproxima aqui da de diáspora, pois nos seus efeitos tanto uma como a outra questionam o modelo hegemónico de organização política, o Estado-nação, bem como as suas representações reais e figuradas. Para Boyarin, a noção de diáspora e a identidade fluída que promove “oferece um 'terreno' alternativo ao do Estado territorial para a relação complexa e sempre litigiosa entre a identidade cultural e a organização política. Um tal terreno alternativo poderia evitar os meios necessariamente violentos pelos quais os Estados resistem à sua inevitável impermanência. Poderia permitir insistir menos na pureza proveniente da concepção dominante estática da identidade cultural legítima.”

 

O estudo das itinerâncias de intelectuais oriundos do Sul global permite apreender um outro modo possível de estar no mundo, o modo da fronteira e do rizoma, o que permite simultaneamente relativizar a dicotomia entre o Eu/Mesmo e o Outro, dicotomia fundadora das identidades assassinas analisadas pelo escritor libanês Amin Maalouf. Segundo este, seria necessário favorecer a emergência de um tal estar-no-mundo pondo em destaque os indivíduos que vivem na “fronteira”, no “cruzamento” de culturas: “por todo o lado, nesta sociedade dividida, encontra-se um determinado número de homens e de mulheres que trazem em si pertenças contraditórias, que vivem na fronteira entre comunidades opostas, seres cruzados, de alguma forma, pelas linhas de fraturas étnicas ou religiosas ou outras.” Note-se, por fim, que se a itinerância pós-colonial permite, sem dúvida, o desenvolvimento de um pensamento crítico inovador, não é certamente a condição indispensável para tal. Montaigne, um dos primeiros a ter captado a importância da presença do Outro para a reflexão filosófica desenvolvida a partir da Europa, multiplicou itinerâncias e audácias intelectuais sem ter deixado o continente.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Clifford, James (1997), Routes. Travel and Translation in the Late Twentieth Century. Harvard University Press.

Gilroy, Paul (1993), The Black Atlantic. Modernity and Double Consciousness. London & New York: Verso.

Mudimbe, V.Y. (1994), Les corps glorieux des mots et des êtres. Esquisse d’un jardin africain à la bénédictine. Montréal &Paris: Humanitas & Présence Africaine.

 


Fabrice Schurmans é doutorado em Estudos pós-coloniais (CES). As suas publicações incidem sobre literaturas pós-coloniais numa perspetiva comparada e interdisciplinar e questões teóricas pós-coloniais (e.g. tradução, fronteira, identidade). Publicou também várias traduções de peças de teatro portuguesas. É autor de contos e romances.

 

 

Como citar

Schurmans, Fabrice (2019), "Itinerâncias", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24308&id_lingua=4. ISBN: 978-989-8847-08-9