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Maria Irene Ramalho

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Liberalismo

João Rodrigues
Publicado em 2019-04-01

Visto do Norte Global, o liberalismo é uma polifacetada e moderna narrativa do progresso humano, baseada na igualdade perante a lei, na limitação do poder arbitrário do Estado e na promoção dos mercados capitalistas; baseado, em suma, na criação das condições institucionais para a expansão da liberdade individual, incluindo um neutral processo, passível de universalização, de livre escolha dos valores e dos fins.

 

Visto do Norte Global, um liberal deixou de ser alguém pessoalmente generoso, um dos sentidos pré-políticos do termo, algures entre o iluminismo escocês, da segunda metade do século XVIII, culminando em Adam Smith, e os primeiros anos do século XIX, “los liberales” nas cortes espanholas de Cádis, que proclamaram uma Constituição e procuraram desmantelar o que passou a ser designado por Antigo Regime.

 

Visto do Norte Global, o liberalismo ganhava agora as suas verdadeiras cores políticas, fossem estas baseadas em justificações jusnaturalistas, utilitaristas ou em qualquer híbrido no meio: a aspiração a uma nova ordem ética, económica, social e política, nacional e internacional, mais avançada, porque mais inclusiva, progressista e civilizada.

 

Visto do Norte Global esta aspiração triunfaria, face aos seus antigos e novos rivais autoritários, nos dois séculos subsequentes, graças sobretudo à ação do seu eixo transatlântico, o tal mundo ocidental. A expressão máxima desse triunfo seria a enésima proclamação, em 1989, do “Fim da História”: o capitalismo demoliberal seria assim o último estádio, inultrapassável, do progresso humano.

 

Vista do Norte global, a história passou a ser a lenta remoção, a partir do Estado de Direito e da sociedade civil, os grandes binómios inventados por esta ideologia global, do paternalismo, do preconceito religioso ou da hierarquia naturalizada, mas, também, do igualitarismo socialmente nivelador, que estiolaria os incentivos de mercado e as carreiras abertas aos talentos, ou do abuso da vontade de uma maioria que, na ausência de freios e contrapesos, se imporia às minorias.

 

Visto do Norte global, o liberalismo seria hoje o outro nome da tolerância cultural cosmopolita, do feminismo ao antirracismo; o outro nome da globalização económica, politicamente pacificadora; o outro nome da melhor busca possível de um modus vivendi jurídico e político que permitiria acomodar uma sociedade cada vez mais plural, seja essa busca feita através de dispositivos pedagógicos como o véu da ignorância Rawlsiano, seja através de racionalidades comunicativas Habermasianas, seja através da observação do lento crescimento orgânico, por tentativa e erro, de convenções jurídicas e de práticas económicas mercantis, criadoras de uma “Sociedade Aberta” Popperiana ou Hayekiana.

 

A questão que há que colocar neste momento é dupla: será esta a única visão e será esta visão a mais capaz de nos dar a ver o liberalismo realmente existente e a sua história? A resposta a esta dupla pergunta é duplamente negativa, mas só se olharmos para as traseiras do liberalismo, para o seu reverso, escrevendo uma “contra-história”, também graças às Epistemologias do Sul (Losurdo, 2014; Santos, 2014).

 

De facto, a história do liberalismo que emerge é muito diferente, quando a interpretamos pelo prisma do Sul Global, de todos os grupos subalternos silenciados e invisibilizados. É que o liberalismo transportou as marcas das suas origens no Norte Global: com honrosas exceções, as primeiras Constituições foram escritas apenas por homens, brancos e proprietários. O liberalismo tem de ser pensado a partir das suas origens patriarcais, racistas, colonialistas, capitalistas e até escravocratas. Os índios, os negros, as mulheres, os trabalhadores assalariados, os pobres não foram apenas excluídos da nova comunidade política, mas foram oprimidos e explorados, muitas vezes de formas novas, mais subtis, mas não menos violentas. E essas opressões e explorações, essas novas formas de compulsão, até por um maior papel desempenhado pelo aguilhão da fome em certos contextos históricos, foram toleradas e justificadas por demasiados liberais. Estes estavam apostados em destruir formas de comunidade que garantiam o acesso de muitas à provisão não-mercantil de bens e em impedir a sua recriação, por exemplo por via sindical. Muitos liberais estavam apostados em criar uma economia desincrustada da sociedade, impondo custos sociais em sentido amplo aos de baixo (Polanyi, 1944).

 

A história intelectual tem de dar conta disto. Por exemplo, o tão celebrado Alexis de Tocqueville, o da Democracia da América, defendeu vigorosamente, na década de quarenta do século XIX, a repressão da sublevação operária na metrópole, mas também as operações militares francesas na Argélia, ou seja, toda a violência do capitalismo liberal e do colonialismo. Já o igualmente celebrado John Stuart Mill, o da liberdade sem dano e até o dos direitos das mulheres, manteve firme a convicção liberal numa democracia limitada, em que os mais dotados em termos educativos teriam, no quadro de um esquema de voto plural, um maior peso. E, já no século XX, liberais como Ludwig von Mises saudaram Mussolini, na década de vinte, por ter salvado o princípio da propriedade privada. As eras das revoluções e dos extremos estão cheias de liberalismos deste tipo. Não estamos perante aberrações.

 

Visto do Sul Global, a desconfiança em relação às massas ignaras, ao seu protagonismo político, é uma constante de um liberalismo intrinsecamente desconfiando de uma soberania popular que teria ajudado a proclamar, mas que sempre procurou anestesiar, fosse pela limitação do voto, fosse pela limitação dos direitos de associação, fosse por ignorar durante demasiado tempo os horrores que se escondiam nas fábricas, nas minas ou nas plantações, na tal sociedade civil só formal e limitadamente composta por iguais, incluindo perante a lei.

 

Visto do Sul Global, o liberalismo é o outro nome do imperialismo de comércio livre, do protecionismo dos mais fortes vinculado ao Padrão-Ouro, da construção de impérios coloniais no final do século XIX ou da ofuscação dos seus “holocaustos vitorianos” (Davis, 2001).

 

Visto do Sul Global, o liberalismo, essa ideologia de uma minoria burguesa hegemónica, também se declinou no idioma pseudocientífico do “darwinismo social”, da sobrevivência dos mais fortes, numa sociedade vista como um somatório de indivíduos egoístas, apenas refreados e civilizados pelo nexo-dinheiro, pelo panótico e pelo asilo para pobres.

 

Visto do Sul Global, o liberalismo é o outro nome da utopia capitalista, ou seja, da distopia capitalista para os subalternos. E foram as polifacetadas lutas destes últimos, pela redistribuição e pelo reconhecimento, que conseguiram algumas ilhas, de resto, sempre precárias de civilização nas sociedades ditas liberais, permitindo, de forma paradoxal, acomodações que beneficiaram um liberalismo relutantemente social e democrático e até, por vezes, anti-imperialista.

 

Visto do Sul Global, as lutas anticoloniais, as lutas operárias, as lutas feministas, as lutas antirracistas, as lutas democráticas, incluindo pelo sufrágio universal, transformaram o liberalismo, estilhaçaram-no temporariamente num certo sentido, algures no século XX. E fizeram-no opondo ao individualismo desenraizado, a realidade múltipla dos conhecimentos que nutrem os laços sociais forjados em comunidades funcionais para uma imensa maioria.

 

Visto do Sul Global, o liberalismo, que se transmutou em neoliberalismo, é o esforço para colar esses estilhaços, em nome de uma nova utopia capitalista desincrustada. Visto do Sul Global, sabemos quem é que ganha e quem é que perde com esta ideologia (ver Neoliberalismo).

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Davis, Mike (2012), Late Victorian Holocausts: El Niño Famines and the Making of the Third World. Londres: Verso.

Losurdo, Domenico (2012), Liberalism: A Counter-History. Londres: Verso.

Polanyi, Karl (1944), A Grande Transformação – As Origens Políticas e Económicas do Nosso Tempo. Lisboa: Edições 70.

Santos, Boaventura de Sousa (2014), Epistemologies of the South – Justice Against Epistemicide. Londres: Paradigm Publishers.

 


João Rodrigues é Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Investigador do seu Centro de Estudos Sociais. É coautor do blogue de economia política Ladrões de Bicicletas e membro do Conselho Editorial do Le Monde diplomatique – edição portuguesa.

 

 

Como citar

Rodrigues, João (2019), "Liberalismo", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24313&id_lingua=4. ISBN: 978-989-8847-08-9