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Nacionalismo(s)

Iolanda Vasile
Publicado em 2019-04-01

O nacionalismo é um conceito muito presente no vocabulário político atual, embora tal não se traduza num acordo quanto ao seu significado e suas múltiplas valências. Uma interpretação do termo passa por assumir que este é um conceito fluido, em constante mutação, determinado e determinante.

 

Os nacionalismos são circunscritos aos espaços culturais, linguísticos e históricos que lhe conferem o locus enunciativo para manifestar de maneira particular as suas identidades, associadas às ideias modernas de nação, construídas na complexidade de moldes daqueles espaços. Enquanto categoria sociopolítica, o nacionalismo pode ser definido como o sentimento abstrato de pertença que se concretiza a partir destes espaços comuns, socio-linguísticos, históricos e culturais, vividos das pessoas e construídos e definidos enquanto projeto de nação.
Se a língua, etnia e religião são elementos herdados, a ideia de nação e, implicitamente o nacionalismo, são construções mutáveis no tempo e espaço, dependentes da existência de uma memória comum das pessoas (Chatterjee, 1993). Esta memória em comum conta com a alimentação perpétua de uma “etnicidade fictícia” (Balibar, 1991), de rótulos enraizados construídos em torno de uma suposta unidade de valores, de etnia, língua e crença. A nação foi geralmente construída em torno de uma caracterização feminina, maternal, fruto de uma memória masculinizada de pertença, de luta e do alcançar. Neste ventre metafórico brotou “o nacionalismo” como domínio do masculino, capaz de defender os interesses da Nação (Mayer, 2000).

 

Na tradição histórico-política do século XIX europeu, a nação constitui-se por oposição a um “Outro”, discurso que reforça a ideia de unidade por oposição. Desta perspectiva, apesar de visto como o grande logro da “civilização europeia”, o nacionalismo foi justamente o gatilho das duas Guerras Mundiais e dos processos de independência africanos e asiáticos nos anos 50 e 60 do século XX. Esta é uma das razões pela qual o “nacionalismo” continua a servir as agendas políticas atuais.
Só recentemente começou a ser reconsiderada a reinterpretação dos referentes teóricos e ideológicos que estão na base do conceito de “nacionalismo”. Mas, para discutir o “nacionalismo” é fulcral desdobrar os significados associados a “pertença” e ao “território”, em relação a uma ideia de nação. A ideia de pertença converge para uma ideia de território, como depositário do espaço físico da nação, mas exemplos como o Estado Palestiniano, ou a própria ideia de unidade territorial falhada da União Europeia, comprovam a dissociação e existência autónoma dos dois termos.
Por outro lado, a conferência de Bandung, o Movimento dos Não-Alinhados, as múltiplas facetas da Guerra Fria, e, depois, a queda do Muro de Berlim, provam a mutabilidade do conceito de nação e a variabilidade dos seus moldes pré-estabelecidos. No fundo, as mudanças sociais, económicas e políticas internacionais das últimas décadas provam a fluidez da própria ideia de “Nação” como um dado. Consequentemente, as novas formas de manipulação do “nacionalismo” têm exposto os problemas deste conceito, através da sua associação a opções políticas extremas. Este desvio permite a exploração do patriotismo como o factor benéfico do nacionalismo.
Em contrapartida, “o nacionalismo anticolonial”, como aponta Chatterjee (1993: 6) demonstra o falhanço do projeto nacionalista eurocêntrico, como projeto universal e incontestável. Desafiando a genealogia universalista, nesta perspetiva o “nacionalismo” surge diretamente associado à contestação de um dado poder político, de uma soberania territorial. De facto, as dinâmicas históricas de vários nacionalismos não-europeus mostram como a resistência espiritual, o mundo privado interior, foi um pilar fundamental do nacionalismo. Esta interpretação permite a associação da ideia de nação a um espaço abstrato, não necessariamente circunscrito territorialmente, tributário apenas da liberdade absoluta e do controle do espírito.

 

Em suma, a história do nacionalismo, ou o “nacionalismo”, não começa com a ideia de nacionalismo europeu, pois enquanto realidade é anterior à emergência do termo, como é o caso das ‘nações originárias’ na América do Norte. Em suma, o nacionalismo, como projeto político, reflete o modelo de Estado-nação europeu, uma ideia de comunidade imaginada, como sublinha Benedict Anderson. Mas é o olhar ao espelho – como quadro conceitual e emocional de cunho (in)formativo - que permite uma presença e participação ativa nas próprias histórias nacionais. À luz das epistemologias do Sul há que relembrar a polivalência de interpretações de mundo possível que assentam no tecer das nossas histórias nacionais e na diversidade de elementos e sensibilidades que constituem a linguagem das memórias (não)faladas. Este movimento circular do mundo permitirá dar voz aos nacionalismos relegados para o lado errado da história, sendo ele nacionalismo desterritorializado ou ostracizado para o espaço da resistência espiritual. Para isso, o corpo da nação precisa assumir-se como andrógino, para facultar a releitura do espectáculo de diversidades que o nacionalismo possa proporcionar.


Referências e sugestões adicionais de leitura:
Balibar, Étienne (1991), “The nation form: history and ideology”, in Étienne Balibar and Immanuel Wallerstein, Race, Nation, Class: Ambiguous Identities. London: Verso, 86-106.
Anderson, Benedict (1991), Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. London: Verso.
Chatterjee, Partha (1993), The Nation and its Fragments: Colonial and Postcolonial Histories. Princeton: Princeton University Press.
Mayer, Tamara (2000), Gender Ironies of Nationalism: Sexing the Nation. London: Routledge.

 

Iolanda Vasile é investigadora júnior no CES e doutoranda no programa “Pós-Colonialismos e Cidadania Global” do CES, com o tema “O poder da escrita: (re)escrevendo as lutas de libertação em Angola (1945-1961)”. Docente do Instituto Camões na Universidade de Oeste na Roménia.

 

Como citar

Vasile, Iolanda (2019), "Nacionalismo(s)", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24416&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9