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Agroecologia

Luciana Jacob
Publicado em 2019-04-01

A racionalidade moderna ocidental foi descrita por Boaventura de Sousa Santos como uma razão indolente que se apresenta, dentre outras formas, como uma razão metonímica (Santos, 2010).  A razão metonímica é eficiente na imposição da ideia de que há apenas uma lógica que governa o funcionamento do todo, de tal modo que faz dele um todo hegemônico e, assim, as partes que porventura dele dissonem são vistas como particularidades. As consequências disso, para Santos, são principalmente duas. A primeira é que não há nada fora do todo que mereça inteligibilidade ou credibilidade; a segunda é que nenhuma realidade pode ser pensada fora da totalidade.

 

Esta racionalidade fez com que a única possibilidade credível de agricultura no Sul global fosse constituída a partir de traços coloniais e imbuída do mito modernizador, que se responsabiliza por sérios e irreversíveis danos ambientais, pelo aumento das diferenças sociais no campo, pela liquidação de saberes e culturas, pela acentuação da fome e pela perda de soberania alimentar dos povos. Produzir como não-existentes outras realidades possíveis, ou seja, fazer crê-las desqualificadas, invisíveis, descredibilizadas e subalternas, é o maior artifício da razão metonímica para garantir sua hegemonia.

 

Apesar da força empregada para impor o modelo do agronegócio, as práticas de uma agricultura em sintonia com os processos ecológicos e culturais tradicionais persistiram com o passar do tempo. Esta persistência deve-se em grande parte ao conhecimento agronômico descentralizado e desenvolvido localmente. Este conhecimento local, através de processos específicos em diferentes partes do mundo e de acordo com seus contextos, interagiu no último século com saberes científicos de diferentes áreas. Foi desta interação inicial que surgiu, então, a agroecologia como campo de saber científico.


O uso do termo agroecologia data dos anos 1920, pelos primeiros diálogos entre a ecologia, a agronomia, a zoologia e a botânica e fisiologia de plantas. A epistemologia da agroecologia é composta, em sua gênese, pela ideia da aplicação de conhecimentos ecológicos na agricultura. A ampliação e expansão do conceito na segunda metade do século passado foram devidas, em grande parte, à introdução da ideia de agroecossistema por Eugene Odum na década de 1970 e pelo aumento das preocupações ecológicas e ambientais na década de 1980. O conceito e sua epistemologia foram tomando, no decorrer do tempo, diferentes delineamentos de acordo com as especificidades dos contextos em que se desenvolveram.

 

Os contextos e espaços em que se desenvolveu a ideia de agroecologia no Sul global ocasionaram o estabelecimento de processos dialógicos entre intelectuais, ativistas, camponeses, camponesas e suas entidades representativas, representantes de governos, técnicos e técnicas de organizações não-governamentais, entre outros sujeitos. A constituição do conceito de agroecologia, não isenta de conflitos de perspectivas e abordagens, tem se delineado a partir de um processo onde saberes e práticas, desde contextos e pontos de vista plurais, foram colocados em diálogo, notadamente o saber científico e outros saberes. Para além de optar por enquadrar a agroecologia como um grupo de técnicas, uma disciplina científica ou um movimento social, a meu ver, ela assenta em elementos do que Boaventura de Sousa Santos veio a chamar de ecologia de saberes.

 

A agroecologia, portanto, é uma racionalidade que impulsiona um sistema agroalimentar contra-hegemônico. Para contrapor-se radicalmente ao paradigma da agricultura industrial capitalista não pode ser pensada a partir da mesma razão sobre a qual este foi fundado. Terá tampouco condições de promover transformações sociais profundas se for construída à revelia do contexto e dos grupos historicamente silenciados e que mais sofrem as consequências nefastas da crise da modernidade. Dentre os elementos presentes nas epistemologias e lutas sociais pela agroecologia e soberania alimentar, pode-se observar a autonomia, os agroecossistemas tradicionais, a sustentabilidade dos agroecossistemas, as metodologias com base na solidariedade, a ecologia de saberes e a descolonialidade (Jacob, 2016).

 

A epistemologia da agroecologia constitui-se não como uma síntese de conhecimentos de diferentes grupos sociais, nem a partir da hierarquia entre eles, mas como campo de diálogo sobre saberes, práticas e experiências sociais concretas. A articulação entre diferentes lutas sociais e seus saberes pode desenhar uma nova cultura política que tem condições de deflagrar não só processos robustos de resistência às pressões da globalização agroalimentar, como propor alianças e estratégias de ação que, em tempos transformadores e promissores, podem conduzir a um sistema alimentar justo em termos culturais, sociais, econômicos e cognitivos.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Jacob, Luciana Buainain, (2016), Agroecologia na universidade: entre vozes e silenciamentos. Curitiba: Editora Appris.

Santos, Boaventura de Sousa, (2010), A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez.

 

Luciana B. Jacob é pós-doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Coimbra, doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo e mestre em Educação pela Universidade de Brasília. Desenvolve ações e produz conhecimento em ambiente e sociedade, ecologia de saberes e epistemologia. 

 

Como citar

Jacob, Luciana (2019), "Agroecologia", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24435&id_lingua=2. ISBN: 978-989-8847-08-9