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Pedagogia do Oprimido

Shirley Aparecida de Miranda
Publicado em 2019-04-01

Pedagogia do Oprimido, título da magnun opus de Paulo [Régulus] Freire, publicada em 1968, expõe as reflexões que se puseram em curso a partir da campanha de alfabetização de adultos “De pé descalço também se aprende”, emblema que se insinuava contra a desumanização ideológica de que eram vítimas as pessoas analfabetas e pobres. A experiência pioneira desenvolvida por Freire e equipe teve seus registros destruídos em função do golpe militar que sobreveio no Brasil em 1964. No exílio no Chile, Paulo Freire deu prosseguimento à experiência embrionária nos círculo de cultura com camponeses e elaborou os pressupostos de uma pedagogia que ressitua a “educação como prática de liberdade”, título do livro publicado em 1967.


Na elaboração de Freire, a pedagogia do oprimido “tem que ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade” (Freire, 2015: 43). A pedagogia do oprimido faz da opressão e de suas causas o conteúdo de reflexão do qual resultará “o engajamento necessário na luta por sua libertação, em que essa pedagogia se fará e refará” (Freire, 2015, idem).


Colocando como centralidade da pedagogia “o problema da consciencia oprimida e da consciência opressora” (Freire, 2015: 57), Freire reposiciona a humanização, consciência do mundo e consciência de si no mundo, no cerne do ato educativo. Conectando criativamente as influências da dialética hegeliana e do materialismo histórico-dialético, Freire definiu o oprimido como sendo forjado no antagonismo das relações sociais. As inspirações variadas – Hegel, Marx, Erick From, Enrique Dussel, Sartre, Fanon, Memmi – conduziram a originalidade com que Freire interpreta o oprimido, analisando em detalhes a introjeção do opressor e a autodesvalia como característica que o esmaga, desumaniza e contra a qual o ato educativo deve insurgir-se.


Tomando como problema a humanização num contexto de opressão, a pedagogia se volta ao reconhecimento da capacidade transformadora do oprimido, tantas vezes narrada por Freire citando os camponeses e operários nos círculos de cultura. A conscientização, conceito estruturante, foi seguidamente explicitada por Freire como atitude crítica, tarefa histórica de resistência aos contextos de opressão, que exige a complementaridade da ação e reflexão (práxis) e a conexão entre política, epistemologia e estética no ato de conhecer. Ampliar a curiosidade epistemológica diante do mundo destaca-se como desafio do ato educativo, que se torna possível considerando a cultura como eixo da educação.


Com a metáfora da “educação bancária”, Freire analisou os procedimentos educativos hegemônicos, instrumento crucial dos sistemas de opressão. A narração dos conteúdos “depositados” nos educandos por meio da memorização, palavra esvaziada da dimensão concreta que produz a cultura do silêncio configura um dos pressupostos dessa educação. Nesse diapasão, a função social da educação é a integração dos oprimidos à estrutura que os oprime. Ironizando o estranho humanismo dessa concepção Freire desvenda o investimento em “fazer dos homens o seu contrário – o automato, que é a negação de sua ontológica vocação de ser mais” (Freire, 2015: 85).


A educação bancária não consiste numa prática mecânica e Freire não está a admitir a passividade dos educandos: “É que, se os homens são seres da busca e se sua vocação ontológica é humanizar-se, podem, cedo ou tarde, perceber a contradição em que a educação bancária pretende mantê-los e engajar-se na luta por sua libertação”. Sua crítica, entretanto, investe na elaboração de um ato educativo intencionalmente emancipatório. A concepção problematizadora da educação fundamenta-se na prática da dialogicidade apoiada na cultura, resultado do esforço criador que requer dizer a sua palavra. “Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes a exigir deles um novo pronunciar”, por isso, “dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens” (Freire, 2015: 108-109).


A dialogicidade: essência da educação como prática de liberdade é o título do terceiro capítulo de Pedagogia do Oprimido, no qual o método pedagógico é discutido tendo por base a investigação, fluxo no qual a conscientização ocorre. Partindo do pressuposto de que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (Freire, 2015: 95) indica a confiança como âncora de uma relação de aprendizagem em substituição à autossuficiência incompatível com o diálogo.


A pedagogia que não parte da opressão em abstrato pôde abrir-se para entender outras formas de opressão – como o colonialismo, o racismo e o patriarcado. E o pensamento que se interroga pôde colocar em questão o sexismo presente na linguagem das primeiras obras, aqui propositalmente preservado. Como assinala bell hooks (2017), ao acolher o questionamento crítico dessa falha, Freire manteve seu pensamento pedagógico como um recurso válido de emancipação, com a confiança no povo e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar (Freire, 2015: 253).


Referências e sugestões adicionais de leitura:
Freire, Paulo (2014), Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Freire, Paulo (2015), Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. [59.ª ed.]
hooks, bell (2013), Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fonte.


Shirley Aparecida de Miranda é professora associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, investigando os temas de Educação, Cultura, Movimentos Sociais e Ações Coletivas. É licenciada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil).

 

Como citar

Miranda, Shirley Aparecida de (2019), "Pedagogia do Oprimido", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24478&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9