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No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

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Prazer

Maisa Antunes
Publicado em 2019-04-01

Na análise das esferas da estrutura do pensamento moderno ocidental, o prazer, juntamente com a autoria e a artefactualidade discursiva, compõe um dos domínios da emancipação: a racionalidade estético-expressiva (Santos, 2002: 71-77). Essas dimensões assinalam um caráter de inacabamento e abertura, que, na prática, podem ser tidas como atitudes de libertação. Santos aponta que o prazer foi expulso da ciência, ficando prisioneiro do consumo de massa (Ibidem: 107), e que há, no âmbito das artes, uma espécie de institucionalização dessa dimensão. Tal institucionalização “deu-se através da industrialização do lazer e dos tempos livres, das indústrias culturais e da ideologia e prática do consumismo.” (Ibidem: 72). Mesmo diante desse cenário, encontrando-se semi-enclausurado, o prazer, no âmbito da racionalidade estético-expressiva, pôde ser imaginado utopicamente, mais do que semi-liberto (Ibidem).


O prazer é uma dimensão inerente à condição humana, está fundamentalmente relacionado às emoções e ao brincar. Humberto Maturana e Gerda Verden-Zöller lembram-nos de que a cultura moderna ocidental desdenhou do brincar e desvalorizou as emoções como fundamentos que orientam qualquer ação humana e que por isso tornamo-nos limitados social e biologicamente, já que há um desequilíbrio que privilegia a razão (2004: 221). Tal desequilíbrio fez com que perdêssemos a inocência e deixássemos de brincar. A negação do brincar como aspecto central da vida e como consciência de si e do mundo levou-nos a concentrar nossa atenção no futuro, tirando-nos a capacidade de viver o presente (Ibidem: 230). Com isso, nossas emoções ficaram orientadas à competição e à indiferença.


Maturana e Verden-Zöller dizem que a cultura patriarcal europeia, fora antes matrística: o viver era centrado na estética sensual, no amor, com tempo disponível para contemplar a vida e viver o mundo sem urgência (2004: 40-41); o emocionar da vida adulta assemelhava-se à infância; o sexo e o corpo não eram tidos como fontes de vergonha, obscenidade, ou como fonte de procriação, mas uma vertente de prazer, sensualidade, ternura e estética (2004: 48). Nessa cultura, as relações não se fundamentavam na propriedade, nem no controle. Quando as emoções passam a ser fundamentadas pela apropriação, necessidade de controle e acúmulo, parece acontecer uma espécie de nascedouro do capitalismo, patriarcado e colonialismo; e foi com esse emocionar que ocorreram as colonizações. A sociedade moderna ocidental vive, portanto, essencialmente o emocionar de uma cultura patriarcal, capitalista e colonial, vibrando as emoções com a hierarquia, a apropriação, a dominação, a competição, o que causa relações de opressão, sofrimento, desigualdades e promove uma injustiça cognitiva.


Atualmente, nosso desejo de não sentirmos dor põem-nos a caminho de uma “justiça cognitiva” (Santos, 2010: 146-153) – tanto no campo prático, como no campo teórico –, em busca de procedimentos e experiências que nos reorientem a construir um conhecimento-emancipação-descolonizador, ou seja, um conhecimento-prazer. O livro A gramática do tempo: para uma nova cultura política (Santos, 2010), que nasce de pesquisas em países do Sul global, apresenta-nos os procedimentos meta-sociológicos: sociologia das ausências e sociologia das emergências, atuando esses dois na esfera do tempo, o primeiro na expansão do presente e o segundo na contração do futuro (2010: 89). Esta atitude nos mobiliza a enfrentar a lógica do pensamento moderno ocidental, que está pautado na dicotomia-hierárquica e no tempo linear, e lança-nos o desafio atual: viver o presente. Junto a este, também o desafio de denunciar os modos de produção da não-existência (2010: 95-98) e buscar a visibilidade, através das ecologias (2010: 98-107), das experiências que acontecem na esfera de outras emoções e outras racionalidades, isto é, a busca por um conhecimento-prazer.


O prazer está associado também à sua percepção enquanto linguagem, o que justifica sua presença como uma das dimensões da racionalidade estético-expressiva, na qual se situa a arte. Esta percepção amplia a sua condição de expressão e brincadeira, ou seja, a concentração no presente e a atenção voltada para a própria atividade que se faz, e não para seus resultados (Maturana e Verden-Zöller, 2004: 231). O prazer não é riso, divertimento e comicidade; é uma dimensão inerente ao ser, associando-se ao jogo, já que somos também homo ludens (Huizinga, 2003: 15). O jogo não é preparação para o futuro, nem exercício de autocontrole, nem está comprometido com a dominação e a competição; tem antes um carácter profundamente estético (Ibidem: 18). Estes aspectos relacionados ao prazer permite-nos entender que a busca por ele poderá ser uma busca pela “justiça cognitiva”. Desse modo, os carácteres “estético”, “brincante” e o “da luta” mostram-nos que a seriedade é um componente fundamental do prazer.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Huizinga, Johan (2003), Homo Ludens. Um estudo sobre o elemento lúdico da cultura. Lisboa: Edições 70.
Maturana, Humberto R.; Verden-Zöller, Gerda (2004), Amar e Brincar: fundamentos esquecidos do humano – do patriarcado à democracia. São Paulo: Palas Atenas. Tradução de Humberto Mariotii e Lia Diskin.
Santos, Boaventura de Sousa (2002), A crítica da Razão Indolente – Contra o desperdício da experiência. Porto: Editora Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa (2010), A Gramática do tempo: para uma nova cultura política. Porto: Editora Afrontamento. [2.ª ed.]

 

Maisa Antunes é Doutoranda do Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra, Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global. Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Atuou em projetos artísticos. Participou da elaboração de livros didáticos para crianças do/no semiárido brasileiro. É professora na Universidade do Estado da Bahia.

 

Como citar

Antunes, Maisa (2019), "Prazer", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24494&id_lingua=2. ISBN: 978-989-8847-08-9