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Religião

Teresa Toldy
Publicado em 2019-04-01

A religião é uma espada de dois gumes: tanto inspira movimentos hegemónicos, como movimentos contra-hegemónicos, sendo que, como recorda Boaventura de Sousa Santos, “o que é hegemónico ou contra-hegemónico só pode ser determinado contextualmente” (2013: 51). Antes de mais, será útil recordar que o próprio conceito moderno de “religião” resulta da dinâmica hegemónica iluminista (portanto, eurocêntrica), inspiradora dos primórdios da antropologia e da sociologia, preocupada em encontrar conceitos supostamente “universais”, isto é, capazes de subsumir a diversidade do mundo e, simultaneamente, de a classificar e hierarquizar. De facto, o conceito moderno de religião não só pretendia estabelecer uma distinção entre o “ser religioso” e o “ser crente filiado” (distinguir, por exemplo, entre ser religioso e ser cristão), como pretendia interpretar todas as expressões religiosas do mundo à luz das categorias de religião definidas pela racionalidade iluminista. Daqui resultava a classificação de algumas dessas expressões como “religião” (incluindo quando elas não se reconheciam como tal) e a classificação de outras como “superstição”.


Também iluminista/eurocêntrica parece ser a discussão em torno do secularismo (como programa político) e da secularização (como dinâmica social): os projetos políticos (frequentemente nacionalistas) em que a religião seria sublimada através de uma política de remissão compulsiva da mesma para o espaço privado e de substituição por um espaço cívico identitário e secularizado revelaram-se como sonhos um tanto perdidos e como novas estratégias de classificação das sociedades como “modernas” (secularizadas) ou “pré-modernas” (não-secularizadas) (cf. Asad 2003).


O recurso ao conceito moderno de religião, tal como a discussão em torno do secularismo e da secularização, estão marcados pela territorialidade, isto é, pela demarcação de espaços (físicos, imaginários ou conceptuais) atribuídos ao religioso, a cada religião e ao secular, por exemplo, em discursos e práticas que associam a Europa ao Cristianismo e o Oriente ao Islão, ou, pelo contrário, que associam as sociedades europeias a espaços secularizados e as “outras” sociedades a espaços dominados pela religião. Por outro lado, as próprias religiões podem territorializar-se, isto é, entender-se como determinantes da identidade ancestral de determinado espaço geográfico e como formas de resistência a processos de secularização forçada.


Contudo, a “territorialidade religiosa” pode levar também a um processo de globalização hegemónica, na qual uma religião se expande para fora do seu espaço de surgimento para procurar impor-se, como a verdadeira religião ao mundo inteiro (pense-se nas diversas formas de fundamentalismo, desde o evangélico cristão, ao islâmico, mas pense-se, também, ao longo da história, nos processos de expansão do cristianismo, sob a forma de conquista, cruzada, colonização religiosa, guerras da religião).


Se podemos falar de territorialização do religioso, também poderemos falar de territorialização hegemónica do secular: a afirmação de que determinados grupos, culturas ou religiões não têm lugar no espaço secularizado parece ser reveladora desta demarcação de territórios. Segundo Juergensmeyer (2011), as tensões atuais nas quais se reivindicam pertenças religiosas como inspiração ou motivação para acções violentas resultam precisamente da reação a construções políticas que procuraram estabelecer “um mundo religioso e secular bifurcado”, à luz do qual “há algo a que se chama ‘religião’ que está excluído da vida pública” e algo a que se chama “‘secularismo’, que domina a esfera pública” (ibidem: 186). O recrudescimento da afirmação identitária com base na pertença religiosa, enquanto reação a uma identidade “confiscada” pelo secularismo ou a uma exclusão social por pertença a um grupo étnico ou com origens étnicas tido por estranho, por “outsider” em relação à cultura hegemónica, pode levar a formas de violência nas quais a religião é reivindicada sobretudo como o elemento-base para a estruturação da pertença ao grupo fragilizado.


Por outro lado, as religiões encerram um potencial contra-hegemónico, que será tanto maior quanto mais elas forem capazes de reler a sua história à luz de uma hermenêutica simultaneamente contextualizante e desterritorializante. A hermenêutica contextualizante permitir-lhes-á reconhecer as formas hegemónicas que foram adquirindo ao longo da história, dependentes de dinâmicas socioculturais das quais fizeram parte, nas quais foram determinantes e determinadas. A hermenêutica desterritorializante, numa perspetiva contra-hegemónica, permitir-lhes-á auto-compreenderem-se e agirem como propostas de leitura do mundo e de intervenção ética tomando os discursos e práticas emancipatórias dos direitos humanos como chão para o diálogo intrarreligioso, interreligioso e intercultural, em zonas de contacto “entre as diferentes culturas e formas de saber, fronteiras, encruzilhadas, nepantlism (a palavra azteca para ‘dividido entre caminhos’), zonas intermédias nem exteriores nem interiores, nem familiares nem estrangeiras, nem sujeito nem objecto, condições de exílio sem deixar de pertencer à comunidade”, num “estar-entre epistemológico” criador (Santos: 121).

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Asad, Talal (2003), Formations of the Secular: Christianity, Islam, Modernity. Stanford: Stanford University Press.
Juergensmeyer, Mark (2011), “Rethinking the Secular and Religious Aspects of Violence”, in Craig Calhoun, Mark Juergensmeyer and Jonathan VanAntwerpen (ed.), Rethinking Secularism. Oxford: Oxford University Press, 185-203.
Santos, Boaventura de Sousa (2013), Se Deus fosse um activista dos Direitos Humanos. Coimbra. Edições Almedina.

 

Teresa Toldy é teóloga, doutorada pela Philosophisch-theologische Hochschule Sankt-Georgen (Frankfurt), pós-doutorada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Professora Associada com Agregação na Universidade Fernando Pessoa, investigadora do CES, onde co-coordena o Observatório da Religião no Espaço Público.

 

Como citar

Toldy, Teresa (2019), "Religião", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24522&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9