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Maria Irene Ramalho

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Terras indígenas

Lino João de Oliveira Neves
Publicado em 2019-04-01

Após os mais de cinco séculos do chamado “Descobrimento da América”, genocídios, etnocídios e epistemicídios continuam como as marcas mais visíveis dos “benefícios” da “civilização” para os povos indígenas.


Historicamente o encontro do mundo europeu com os povos originários do continente americano pode ser descrito como o mais insidioso crime perpetrado contra a humanidade em todos os tempos.


O mais incompreensível é que essa tragédia sempre renovada em suas estratégias de intervenção nos mundos indígenas e de produção da não existência indígena continua uma constante, sempre com a mesma violência e brutalidade que é marca histórica do contato entre a hegemonia do mundo monocultural moderno e a complementaridade plural dos mundos indígenas.


Embora a maioria dos estados nacionais latino-americanos reconheça atualmente o direito indígena às terras, a conquista continua interminável. Em todas as partes do continente americano os fragmentos dos antigos territórios étnicos que ainda contam com a presença indígena estão constantemente ameaçados em nome do “progresso”, do “desenvolvimento”, da “modernização”.


Invasões e restrições de uso impostas por interesses privados e programas públicos de desenvolvimento representam ameaças mais diretas à continuidade física e cultural dos povos originários. De outra parte, mas não menos perigosas, as iniciativas políticas de restringir e mesmo excluir as garantias de direitos consignados em legislações nacionais e diplomas legais internacionais colocam em risco os direitos coletivos dos povos indígenas, em especial o direito territorial às terras que histórica e tradicionalmente ocupam.


Conforme os contextos sociopolíticos específicos e os diferentes momentos históricos, ínfimas parcelas do que foram outrora os territórios étnicos originais passaram a ser reconhecidas pelos governos coloniais e posteriormente republicanos sob diferentes denominações: “Tierras Ejidales” e “Tierras Comunales”, no Mèxico; "Indian Reservations", nos Estados Unidos da América; “First Nations reserves”, no Canadá; “Territorios Indigenas”, na Nicaraguá; “Village Lands" e "Communal Lands”, na Guiana; “Comunidades Nativas”, no Peru; “Territorios Indígenas Originarios Campesinos”, na Bolívia; “Reservas indígenas”, na Argentina; “Tierras indígenas”, no Paraguai; “Comunidades Indígenas Resguardadas” e “Tierras indígenas”, na Venezuela; “Circunscripciones Territoriales Indígenas”, no Equador; “Reservas Indígenas” e “Resguardos Indígenas”, na Colômbia; “Terras Indígenas”, no Brasil; etc.


Quando se trata de reconhecer oficialmente terras ocupadas por grupos indígenas são frequentes dois pontos de discordância. O primeiro: devem ser destinadas aos índios “terras indígenas” ou “reservas indígenas”? Esta não é apenas uma discussão semântica; é fundamentalmente uma questão conceitual que toma os povos indígenas como entes políticos contemporâneos detentores de direitos de permanência física e cultural, ou, no caso das “reservas”, como testemunhos históricos de um tempo civilizacional ultrapassado e, como tal, condenados a desaparecem frente o mundo moderno. O segundo ponto de questionamento está ligado ao tamanho que deve ter uma “terra indígena”. Contudo, a discussão sobre a conceituação jurídica e o tamanho da terra destinada aos povos indígenas não é apenas uma questão de extensão fundiária, mas expressa, antes de tudo, a discordância entre reconhecer ou negar os direitos indígenas.


Conceituar as terras ocupadas pelos índios como “reservas indígenas” não corresponde apenas a um vício de linguagem ou resquício de uma conceituação antiga. Muito mais que apenas uma imprecisão conceitual, “reserva indígena” denota uma intencionalidade política de deslegitimar o direito territorial indígena afirmado tanto por legislações nacionais como por diplomas legais internacionais.


O segundo ponto de discordância é que as terras demarcadas representam “muita terra para pouco índio”. Este argumento procura criar a falsa ideia de que os índios “possuem” grandes latifúndios, como são maliciosamente chamadas as “terras indígenas”. Na verdade, as terras hoje ocupadas pelos povos indígenas são apenas partes que restam dos antigos territórios originais e que são na verdade terras da União sobre as quais aos índios é reconhecido unicamente o direito de utilização dos recursos naturais destinados à sua subsistência.


“Reserva indígena” é um conceito em desuso, principalmente por sua conotação negativa intimamente associada ao pensamento evolucionista que nega aos indígenas a sua condição de sujeitos políticos contemporâneos. Como espaços físicos de confinamento étnico destinados à reclusão de culturas “primitivas”, as “reservas indígenas” são espaços de regulação social através da qual o Estado e a sociedade nacional subordinam cultural, social, política e epistemologicamente os povos indígenas.


Ao contrário de reservas de confinamento, “terras indígenas” são espaços étnicos de exercício da alteridade que garantem aos povos indígenas não apenas as condições materiais de sobrevivência física e cultural, mas principalmente as condições sociopolíticas de permanência futura na situação de contato com as sociedades nacionais.


Como espaços socioculturais de existência política diferenciada as áreas conceituadas em diferentes países como “resguardos”, “terras”, “territórios indígenas” etc. podem ser considerados como equivalentes, desde que levado em conta os seus respectivos contextos políticos-jurídicos. Nesse sentido, “resguardos”, “terras”, “territórios indígenas” etc. são espaços políticos diametralmente opostos à ideia de “reserva”, que apesar de superado na maior parte das sociedades plurinacionais enquanto conceito e propósito civilizacional continua a existir como referente linguístico e como marca atualizada da colonialidade sempre presente em contextos interétnicos.


No contexto das relações interétnicas “terra indígena” é o palco privilegiado de afirmação de concepções distintas de mundo, de afirmação positiva das diferenças através do diálogo intercultural. Nesse sentido, superando desencontros e conflitos decorrentes de visões diferentes, a “terra indígena” pode se tornar o lugar de superação da diferença excludente que aparta o índio da sociedade nacional para se constituir em lugar de afirmação da emancipação social, como ponte para construção de uma igualdade “diferenciada” vivida na pluralidade.


Vale lembrar que embora os direitos indígenas estejam contemplados na Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da Organização das Nações Unidas, na Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, da Organização Internacional do Trabalho, e em diversas legislações nacionais, em praticamente todos os países latino-americanos, estes são seguidamente desrespeitados, inclusive com a conivência e participação ativa de poderes e autoridades públicas. De modo especial, os direitos territoriais indígenas são sistematicamente violados, tanto através de invasões por empresários e segmentos das populações locais, como por interesses nacionais que provocam impactos irreversíveis ao meio ambiente indígena e à vida das populações atingidas.


A produção da não-existência indígena é visível no discurso anti-indígena. Ao negar os direitos indígenas os diferentes atores sociais que tomam os índios como inimigos da sociedade e do país explicitam velhos preconceitos que revigoram a discriminação étnica, com o objetivo explícito, ou camuflado, de negar a possibilidade de existência contemporânea dos indígenas.


Para os índios, a terra não é apenas fonte de recursos naturais, é, sobretudo, um recurso sociocultural para a manutenção da vida em comunidade. Mesmo após séculos de convivência com o modelo privatista que predomina no mundo moderno, para os índios a terra mantem a sua condição de “propriedade” coletiva, enfatizando o grupo como um todo, e não indivíduos isolados. Essa visão sobre a terra ocupada como um espaço social coletivo é talvez o ponto mais explícito de concepções divergentes entre o “mundo do branco” e o “mundo indígena”, em torno do qual surgem desentendimentos e disputas frequentes.


As “terras indígenas”, e de modo particular aquelas nas quais os próprios indígenas assumem o protagonismo político no processo de seu reconhecimento oficial, são concebidas como terras recebidas de gerações ancestrais e que devem ser repassadas às gerações futuras; terras vividas hoje com o compromisso maior de ficarem como herança para os netos e bisnetos que ainda nem sequer nasceram, mas a quem caberá a responsabilidade de fazer com que esses pedaços especiais de terrenos continuem a ser concebidos e vividos como terras específicas, como terra indígena com a qual um determinado povo estabelece a sua identificação mais profunda.


Visto pela ótica da globalização, esse processo histórico que atinge direta ou indiretamente todas as diferentes sociedades humanas em todas as partes do mundo, faz sentido demarcar terras indígenas? Antes de qualquer resposta é necessário considerar que as “terras indígenas” são espaços sociais que favorecem a possibilidade de continuidade étnica. Assim, o reconhecimento de “terra indígena” não pode ser tomado a partir de uma lógica imediatista focada apenas no presente imediato, nem, tampouco entendido como mecanismo de apartar populações indígenas do contato com os demais segmentos da sociedade nacional ou internacional.


Essa é uma interpretação estreita do significado político da “terra indígena”, que é, antes de tudo, lugar de exercício etnopolítico da identidade indígena não submetida. Reconhecer “terra indígena” é garantir o espaço político de exercício da diferença e projetar ao futuro a possibilidade de continuidade étnica diferenciada numa sociedade plural que reconheça a alteridade, tomando-a naquilo que ela tem de mais positivo, a afirmação de diferenças que não necessitam nem devem ser reduzidas a uma uniformização cultural empobrecedora.


Referências e sugestões adicionais de leitura:
Martins, José de Souza (2009), Fronteira; a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto.
Oliveira, João Pacheco (1995), “Muita Terra para Pouco Índio? Uma Introdução (Crítica) ao Indigenismo e à Atualização do Preconceito”, in Aracy Lopes da Silva e Luís Donizete Benzi Grupioni (orgs.), A Temática Indigna na escola: Novos subsídios para os professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 61-81.
Oliveira Neves, Lino João de (2013), Volta ao Começo: Demarcação Emancipatória de Terras Indígenas no Brasil. Tese de Doutoramento em Sociologia do Desenvolvimento e da Transformação Social. Universidade de Coimbra.

 

Lino João de Oliveira Neves, antropólogo-indigenista, com trabalho direto desde 1979 com os povos indígenas na Amazônia, em particular na Amazônia brasileira. Professor no Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas, Brasil. Mestrado em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, Doutorado em Sociologia, pela Universidade de Coimbra, Portugal.

 

Como citar

Oliveira Neves, Lino João de (2019), "Terras indígenas", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24564&id_lingua=2. ISBN: 978-989-8847-08-9