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No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

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Terra

Boaventura Monjane
Publicado em 2019-04-30

O reducionismo economicista com que as narrativas dominantes geralmente tratam a questão fundiária no mundo não é representativo e é desafiado pelas múltiplas aceções atribuídas à terra por vários povos e culturas – camponeses e indígenas – do mundo. A excessiva valorização do aspeto da produtividade da terra sobre outras atribuições simbólicas, culturais e espirituais tem estado na origem da maioria dos fracassos recorrentes na compreensão da natureza da questão agrária em várias partes do mundo.

 

Dentro dos estudos da e sobre a economia política agrária não crítica, assim como nas abordagens neoclássicas, a terra é quase fundamentalmente vista como um meio/substrato para a produção, intensiva ou extensiva de alimentos através da agricultura. Sem negligenciar a importância do elemento produtivo da terra, principalmente em sociedades onde a prática da agricultura é a principal, se não a única atividade que garante o sustento, é preciso contudo questionar a cegueira conceitual, que continua a reproduzir uma racionalidade incapaz de aceitar que a compreensão do mundo é muito mais do que a compreensão ocidental do mundo.

 

Por exemplo, a definição que a Organização das Nações Unidas (ONU) dá à terra é meramente tecnicista e exclui elementos relacionais entre a terra enquanto “superfície terrestre” e os seres vivos (humanos), minimizando aspetos identitários e de cosmovisão. É portanto uma abordagem que está refém do que é visível e tangível.

 

As experiências e conhecimentos de povos indígenas e camponeses de várias culturas desafiam-nos a ampliar conceções simplicistas. O exemplo de João Palate, antigo vice-presidente da União Nacional de Camponeses de Moçambique – reagindo à posição de um economista que defendia que os camponeses poderiam obter benefícios monetários com a privatização da terra agrícola – é revelador. “Eu tenho uma relação espiritual com a minha terra. Como privatizar a minha identidade?”. Esta colocação sugere que a relação que o camponês mantém com a terra que cultiva, habita e onde desenvolve atividades sociais e espirituais, vai para além do aspeto monetário-financeiro instrumental da terra como bem transacionável. Não é, portanto, difícil compreender a violência identitária que reside no reassentamento forçado ou expulsão de comunidades rurais e indígenas, no contexto da penetração do capital no campo.

 

Em vários contextos, tal como alguns autores sugeriram, entre as famílias rurais a terra utilizada para os vários consumos não é perfeitamente substituível pela terra para o mercado e este não passa, exclusivamente, pela convertibilidade dos ativos como o capital, mas também pela convertibilidade destes com as redes de obrigações sociais, ou seja, há relações sociais que passam pela terra.

 

Em sociedade onde se viveu a experiência colonial, como é o caso de Moçambique, as lutas pela e em defesa da terra hoje aludem igualmente a questão da soberania para justificar suas resistências à pressão do capital. Esta afirmação, de um camponês moçambicano citado num relatório sobre conflitos de terra é disso um exemplo: “Quem arranca a terra arranca tudo: a nossa vida, o nosso futuro e dos nossos filhos. Já não iremos ter acesso as nossas mangas, bananas, capim para cobrir as nossas casas. (...) Mas nós estamos dispostos a tudo para salvaguardar os nossos direitos (...). Nós lutamos pela independência (...) e agora estamos a ser arrancados a terra, afinal porque é que lutamos [pela soberania] ao longo de todo esses anos”.

 

As epistemologias do Sul teorizadas por Santos (2018) fazem uma contribuição valiosa ao fornecerem ferramentas que nos possibilitam, então, ampliar as lentes e denunciar o simplismo conceitual que domina os estudos sobre a questão fundiária hoje. O conceito da terra, para as Epistemologias do Sul, é visto em relação com outros conceitos – geralmente nascidos das lutas – tais como “bens comuns”, “agroecologia”, “soberania alimentar”. A tradução intercultural, um dos procedimentos deste quadro teórico, permite-nos ver que a terra vai-se transformando numa metáfora do viver bem, isto é, não se trata de uma questão exclusivamente agrária, mas uma questão da centralidade da vida em todas as suas formas.

 

Na América Latina, África, Ásia e Oceania onde povos originários gradualmente veem uma conceção intercultural de terra como território, as lutas mais significativas giram em volta da terra: quer contra o Estado, quer contra o capitalismo transnacional, assim como contra formas de opressão e dominação na base de género. As lutas e resistências às ocupações territoriais que continuam hoje com a exploração de recursos naturais dos países da periferia do sistema e as resistências aos sistemas patriarcais de posse e propriedade da terra, hoje dominantes no mundo, colocam a terra como sendo um descodificador das lutas anticapitalistas, mas também anti(neo)coloniais e antipatriarcais no mundo.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Justiça Ambiental e UNAC (2011), “Os senhores da Terra - Análise preliminar do fenómeno de usurpação de terras em Moçambique”, Edição dos autores. Maputo. Consultado a 30.04.2019, em http://www.iese.ac.mz/lib/PPI/IESE-PPI/pastas/governacao/agricultura/artigos_cientificos_imprensa/landgrabing_final.pdf.
Negrão, José (2002), “A indispensável terra africana para o aumento da riqueza dos pobres”, Oficina do CES, 179. Consultado a 29.04.2019, em https://ces.uc.pt/en/publicacoes/outras-publicacoes-e-colecoes/oficina-do-ces/numeros/oficina-179.
Santos, Boaventura de Sousa (2011), “Épistémologies Du Sud”, Études Rurales, 187, 21–50.

 

Boaventura Monjane é doutorando em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, no Centro de Estudos Sociais (bolseiro FCT: PD/BD/113919/2015). É investigador associado do Sam Moyo African Institute for Agrarian Studies e doutorando visitante do International Institute of Social Studies. Seus interesses de pesquisa incluem movimentos sociais agrários e a economia política agrária.

 

Como citar

Monjane, Boaventura (2019), "Terra", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=25048&id_lingua=2. ISBN: 978-989-8847-08-9