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Maria Irene Ramalho

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Cuidado

Teresa Cunha, Luísa de Pinho Valle, Cristina del Villar Toribio
Publicado em 2019-05-10

Cuidar é pensar-agir descentrando-se de si; é prestar atenção; é solicitude; é desvelo; é preocupação e inquietação pelo bem-estar de outrem; é afeição vital pelos bens comuns; é sentir com e é querer sentir com; é uma forma profunda de partilhar a responsabilidade pela vida em todas as suas formas. O cuidado é, pois, o corazonar que permite que a vida não apenas emerja e se mantenha, mas que possa ser vivida em toda a sua abundância. Como reflecte Patricio Arias en el Corazonar no hay centro, por el contrario, lo que busca es descentrar, desplazar, fracturar (…) [E]l Co-Razonar la nutre de afectividad, a fin de de-colonizar el carácter perverso, conquistador y colonial que históricamente ha tenido (Guerrero Arias, 2010: 11). No nosso entendimento, o cuidado não é apenas uma questão social nem diz respeito somente à domesticidade. Há nele dimensões ontológicas, sociais e epistemológicas que devem ser pensadas e reflectidas.


Dimensão ontológica do cuidado
Na filosofia do uBuntu da África subsaariana a dimensão constitutiva ontológica do cuidado transparece, de imediato, na tradução mais conhecida do seu conceito central: eu sou, porque nós somos. Não se trata apenas de uma conexão social entre o ser que cada pessoa é e a sua interdependência com a comunidade que habita. É bastante mais do que isso; é a afirmação de que, sem cuidar e ser cuidada, a pessoa, prescinde da sua humanidade. Aliás, isso torna-se ainda mais claro quando ao uBuntu é atribuído o sentido primordial da transcendência em três sentidos: sair de si em direção à sua ancestralidade; sair de si em direcção à comunidade e, finalmente transcender-se a si mesma/o em direcção às potencialidades que cada uma e cada um de nós tem (Cornell, 2009: 47). O uBuntu pode, assim, ser considerado uma ontologia do cuidado na qual a constituição e a existência como ser e pessoa é profundamente articulada nessa interdependência que recria um mundo onde todas e todos têm lugar e dignidade. A partir de um outro lugar do mundo, a Índia, consideramos que a ideia de ahimsa, que no sânscrito significa a ausência de desejo de matar e que é comumente traduzida por não-violência anuncia, também ela, um enunciado ontológico do cuidado. Ela significa a renúncia expressa a qualquer tipo de dano infligido e a escolha pela preservação incondicional de todos os seres e isso é, segundo Mahatma Gandhi, a oposição à vontade do tirano. Neste sentido, a dimensão ontológica do cuidado é tanto as condições da existência do ser como uma ferramenta para a acção de ser: é o presente e o porvir da vitalidade do ser.


Dimensão social do cuidado
Entendemos que a existência não é pura transparência nem abstracta. Ao contrário é enraizada, é concreta mesmo que invisível aos nossos olhos. Neste sentido, o cuidado tem dimensões sociais que não podem ser descartadas e às quais queremos agora prestar a nossa atenção. Referimos duas principais, a nosso ver: o cuidado da terra-mãe à qual todas e todos pertencemos e o cuidado como garantia de produção incessante da vida.


Leonardo Boff afirma que o cuidado é a prática capaz de salvaguardar a Terra como organismo vivo e complexo e de garantir aos seres humanos e não-humanos a partilha e a convivência nesta Casa comum. Assim o cuidado diz respeito a todas as relações sociais que protegem e criam vida. Para tal, se privilegiam as sociabilidades cooperativas, solidárias e que têm, no seu centro, a complementaridade e reciprocidades não simétricas. Neste sentido, as mulheres que secularmente têm assumido tantas tarefas de cuidado têm vindo a realizar este ethos pró-comunal. Este social inscrito na realização desse cuidado levado a cabo por mulheres de todos os lugares do planeta é radicalmente potente pois concebe as relações sociais a partir de uma lógica e de uma racionalidade outras. Por outro lado as ecofeministas (Herrero et al., 2018) apontam práticas transformadoras que fornecem uma visão da cultura do cuidado como inspiração central para pensar uma sociedade ecológica e socialmente responsável e justa.


Queremos precisar que não partilhamos de uma visão essencialista que equaliza mulher e natureza ou que defende a natural vocação das mulheres para o cuidado. Ao contrário, defendemos que as construções sociais do trabalho e do cuidado têm conduzido àquilo que Amaia Perez Orozco designa de uma ética reacionária do cuidado (2017). Essa forma de entender o cuidado inferioriza, desqualifica, estigmatiza e oprime todo trabalho que passa a ser considerado residual e improdutivo e que é, maioritariamente, realizado por mulheres.


Contudo queremos colocar em evidência que a subalternização das tarefas do cuidado não implica, do nosso ponto de vista, a falta de agência das mulheres que se mantêm nesse espaço de sociabilidades. Permanecer, ao invés, pressupõe, para muitas delas, a articulação de estratégias de resistências e de subversão. Uma das consequências mais valiosas deste modo de resistência e produção de existência através do cuidado são as dimensões epistemológicas do cuidado.


Dimensão epistemológica do cuidado
As práticas das nossas mães e avós enquanto mulheres que cuidam constituem saberes que foram sendo transmitidos de geração em geração sob a forma de receitas de cozinha, protocolos de segurança infantil e geriátrica, aconselhamento, mediação de conflitos, aproveitamento e conservação de alimentos, pedagogias de ensino da língua materna, pedagogias de socialização primária, a salubridade, organizar e gerir a casa e o orçamento da família, acompanhamento emocional, criação de animais, produção agrícola de alimentos, conhecimentos medicinais e terapêuticos, entre muitos outros que poderíamos aqui mencionar.


O heteropatriarcado não só expulsou estes trabalhos do cuidado, enquanto produção incessante de vida, da economia monetária como também expulsou da ciência e dos cânones científicos todos estes conhecimentos e competências imaginados, construídos e transmitidos a partir das experiências diversas de muitas mulheres do mundo. O desprezo a que foram votados os conhecimentos gerados pelo cuidado, ridicularizando-os e remetendo-os para ‘coisas de mulheres’ tem permitido criar uma hierarquia epistemológica que acompanha a desvalorização social vital do cuidado tanto na sua dimensão social quanto ontológica.


O cuidado significa uma força poderosa para contrariar a ocupação epistemológica social e ontológica das pessoas, comunidades e territórios, por tecnologias não-conviviais. Em linha com Leonardo Boff, pensamos que o cuidado, em qualquer das suas dimensões é uma realidade fontal e originária sem a qual ser, existir, resistir e porvir seria impossível.

 

Referências e sugestões adicionais de leituras:
Cornell, Drucilla. (2009), “uBuntu, Pluralism and the Responsibility of Legal Academics to the New South Africa”, Law Critique, 20, 43-58.
Guerrero Arias, Patricio (2010), “Corazonar el sentido de las epistemologías dominantes desde las sabidurías insurgentes, para construir sentidos otros de la existencia (primera parte)”, Calle14: Revista de investigación en el campo del arte, 4(5), 80-94.
Herrero, Yayo; Pascual, Marta; González, María (2018), La vida en el centro: Voces y relatos ecofeministas. Madrid: Libros en Acción.
Orozco, Amaia Perez (2017), Subversión feminista de la economía. Aportes para un debate sobre el conflicto capital-vida. Madrid: Traficantes de Sueños. [3.ª ed.]

 

Teresa Cunha é investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra e professora-adjunta da Escola Superior de Educação do Instituto Superior Politécnico de Coimbra. Investigadora associada do CODESRIA e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique.

 

Luísa de Pinho Valle é doutoranda em Democracia no Século XXI, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É graduada em direito (USU/RJ-Brasil), mestra em direito (UnB-Brasil) e em ciências sociais e jurídicas (UPO-Espanha).

 

Cristina del Villar-Toribio é doutoranda em Psicologia na Universidade de Sevilha. É graduada em Psicologia pela mesma instituição e mestra em Migrações Internacionais, Saúde e Bem-estar social.

 

Como citar

Cunha, Teresa; Valle, Luísa de Pinho; Toribio, Cristina del Villar (2019), "Cuidado", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=25288&id_lingua=4. ISBN: 978-989-8847-08-9