Mário Vitória (2013) A liberdade comovendo o povo [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

Destaque Semanal

Algumas pessoas compõem canções, outras pintam quadros ou contam estórias, e há ainda aquelas que fazem revoluções para mudar o mundo. No mar infindável das possibilidades de(...)
Fernando Perazzoli, Flávia Carlet

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Algumas pessoas compõem canções, outras pintam quadros ou contam estórias, e há ainda aquelas que fazem revoluções para mudar o mundo. No mar infindável das possibilidades de(...)
Fernando Perazzoli, Flávia Carlet

 

 

Marielle Franco

Teresa Cunha, Agnes Arruda, Luísa de Pinho Valle, Vânia Cordeiro
Publicado em 2020-01-23

Ninguém solta a mão de ninguém, Marielle!

 

Ilustração: Zeilton Mattos (2019) Marielle [Acrílico sobre tela, 60x50cm]

 

Marielle Franco assumia-se como uma mulher negra, lésbica e favelada. Nasceu e cresceu no Complexo da Maré, uma favela da zona norte do Rio de Janeiro e foi ali, e a partir dali, que sentiu e viveu todo o tipo de violações e violências que fazem parte do quotidiano daquela comunidade. Foi através do espaço e da experiência na Maré que ela forjou a sua própria história pelo direito de ser, por inteiro, essa mulher negra, favelada e lésbica em uma sociedade onde tudo isso significa o não-ser, o abandono, a tristeza, a crueldade, o sofrimento, a discriminação e a morte. Marielle, no entanto, foi além e decidiu ir à luta pela dignidade de si e da vida de todas as gentes. Essa luta em que ninguém solta a mão de ninguém.


A ativista conheceu e enfrentou os problemas sociais das favelas e das periferias do Rio de Janeiro, bem como combateu a normalização da brutalidade e da agressão. Para ela, a paz e a segurança nunca poderiam advir nem dos grupos paramilitares, nem das políticas de segurança da Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. Os primeiros, milícias armadas, impõem o seu regime de terror e atuam na exploração clandestina e centralizada de inúmeros serviços, tais como: gás, televisão a cabo, crédito pessoal, imóveis, e na imposição de proteção/segurança para as/os moradoras/es da favela sob a contraprestação de uma taxa de proteção. As segundas, são sustentadas na militarização policial e na ocupação territorial sob um modelo de operações para a implementação daquilo que foi chamado de ‘pacificação’. As UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, têm como objetivo instituir polícias comunitárias nas favelas com o argumento de, com isso, desarticular quadrilhas e milícias1.


O título que Marielle Franco deu à sua dissertação de mestrado2, ‘UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro’, já demonstrava o compromisso com o seu território e as suas gentes, assim como anunciava a sua análise sobre as dramáticas consequências dessas políticas de segurança. Ela mesma afirmou em seu trabalho que as UPPs foram um modelo importado e, em cujas veias, corre sangue colombiano; isso porque governadores do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, Aécio Neves, de Minas Gerais e, Geraldo Alckmim, de São Paulo, foram à Colômbia conhecer a experiência daquele país e decidiram fazer do Rio de Janeiro um laboratório dessa política interna de segurança (Franco, 2014: 67). O resultado, no seu entendimento, foi a proliferação do discurso da ‘insegurança social’ e a aplicação de uma política voltada para repressão e controle das/os pobres e pretas/os. Com este estudo e a sua divulgação, Marielle aproximava-se, perigosamente, de um mundo de ameaças, assassinatos e corrupção e da identificação de muitos dos seus protagonistas e objetivos criminosos.


Ao contrário, Marielle, que conhecia a realidade das favelas do Rio, sabia que a paz só pode ser construída quando se respeitam as comunidades e a sua capacidade de pensar e transformar-se. Ela afirmava que para além da discriminação socioespacial, as favelas são comunidades onde nascem e se desenvolvem movimentos sociais, instituições e organizações civis que abraçam milhares de moradoras/es em projetos educacionais, culturais, desportivos e em ações políticas. Sem ignorar a tensão desses processos, do enfrentamento com o Estado e das contradições e problemas presentes na vida das favelas, ela chama à atenção que:

 

Mesmo marcada por níveis elevados de subemprego e de informalidade nas relações de trabalho, baixo grau de soberania frente ao conjunto da cidade, fraco investimento social e outros problemas da mesma ordem, a favela acaba por apresentar uma vida, ações e perspectivas que a coloca, em determinados momentos ou circunstâncias, como uma das protagonistas no desenvolvimento da própria cidade. (Franco, 2014: 61)

 

Desde cedo ela levou uma vida de militância pela sua comunidade e pelas causas LGBT. Porém, a sua vida pública iniciou-se, de maneira oficial, em 2006 quando exerceu o cargo de assessora do então candidato a Deputado Estadual pelo Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, hoje, Deputado Federal, pelo mesmo Estado. Coordenou durante mais de 10 anos a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Nos agradecimentos que publicou em sua dissertação, fala da sala e da equipa onde funcionava a Comissão e, neles, mostra que mesmo sendo difícil era, ao mesmo tempo, um desafio querido, alimentado e levado para a frente com muitas mãos e muita convicção partilhada:


[N]a sala da Comissão de DH, lugar frio e sem luz do dia, mas que nos últimos anos aquece o coração a cada sexta-feira de grupo de trabalho.


Durante esse período, ela garantiu a familiares das vítimas de violência policial, incluindo os próprios policiais, o acesso aos auxílios jurídico e psicológico necessários em situações de violência e crise, bem como desenvolveu muitas outras atividades de relevo, em especial pela desmilitarização da sociedade e por uma vida digna e segura para todas e todos.

 

Também foi Vereadora eleita, em 2016, na cidade do Rio de Janeiro. Para muitas pessoas, foi com essa eleição que a sua força ficou visível. Com 46 mil votos, ela foi a segunda mulher mais votada daquele pleito, a quinta entre todas as 51 cadeiras ocupadas na Câmara Municipal3. Marielle continuou empenhada em políticas de não-discriminação em favor daquelas/es que mais precisavam. Serviu os seus ideais e a sua visão política de mundo, ao presidir à Comissão de Defesa da Mulher e ao integrar uma comissão de monitoramento à intervenção federal no Rio de Janeiro, da qual era extremamente crítica4. Sabia que a alteração proposta na autonomia do Estado, com o objetivo de amenizar a crise na segurança, teria um efeito amplificado daquilo que foi gerado anteriormente pelas UPPs. Mais uma vez, pelo seu profundo conhecimento da realidade e das políticas que estavam em causa, aproximava-se de um perigo que enfrentou com coragem.


Em entrevista concedida em maio de 2017, ela dizia que a ‘Casa’, como ela chamava a Assembleia Legislativa, é de todas e de todos!

 

A Casa é de todas/os! Ter este espaço, é garantia de que o outro mundo de fato é possível, como falamos tanto no ano passado durante as eleições e se concretizou como a segunda maior bancada, com uma mulher que era só favelada e agora é favelada e vereadora, então que possamos estar juntos, eu fiscalizando o executivo e vocês me fiscalizando, porque acho que é com isso que nós avançamos.

 

Marielle apresentou na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro vinte Projetos de Lei, dois deles aprovados. Ela conseguiu a regulação do serviço de mototaxi, bem como propor a construção de Casas de Parto com vista a proporcionar às mulheres da periferia espaços seguros para partos naturais e humanizados5.


A voz de Marielle não se resignava nem se desvanecia mesmo quando a batalha era desigual. Ouvia-se no Plenário da Câmara ressoando todos os sofrimentos, todas as lutas que as mulheres travam e travarão nas suas vidas. Por isso, muitas das suas palavras tinham mais sentido do que teriam discursos de circunstância. A irreverência e a convicção atravessavam-nas, poderosamente, como estas que foram proferidas no dia 8 de Março de 2018 dirigidas àqueles que a queriam interromper:

 

Não serei interrompida! Não aturo ‘interrompimento’ dos vereadores desta Casa e não aturarei um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita e presidente de comissão.

 

Sempre coerente com o seu modo de ser e viver, no seu último discurso no Plenário da Câmara, em Março de 2018, ela afirmou (G1Rio, 2018):

 

As mulheres negras, por exemplo, quando passam na rua, ainda ouvem homens que têm a ousadia de falar do quadril largo, das nádegas grandes, do corpo, como se a gente estivesse no período de escravidão. Não estamos, querido! Nós estamos no processo democrático! Vai ter que aturar mulher negra, trans, lésbica, ocupando a diversidade dos espaços.

 

Brutalmente assassinada, Marielle teve sua morte encomendada por aqueles que quiseram deliberadamente a silenciar, mas sua voz ecoa em gestos e ações de muitos. E nós estamos incluídas nessa multidão, que continua o grito e o canto do samba enredo da Estação Primeira de Mangueira de 2019:

 

Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra (...)
Chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês.

 

Para nós, ela representa uma dessas pessoas a que chamamos mestras do mundo: de quem não se pode prescindir, que é essencial para a nossa existência. Dizemos representa, no presente, porque continua sendo signo de luta, força e resistência contra várias opressões. Dizemos representa, porque além do seu corpo físico ela pertence a um corpo coletivo feito de muitos recortes e costuras de muitas mulheres, muitas Marias, Mahins, Marielles, Malês que se abraçam e se sentem identificadas com a sua garra e as suas bandeiras de luta. Para nós, a vida e voz de Marielle despertam emoção e é, também por isso, que a vemos como uma mestra. Porque a emoção e o amor são formas sublimes de estar e transformar o mundo, de si, e de todas e todos que partilham a nossa casa comum. E ela nunca renunciou à política onde a emoção e o amor têm lugar.


Mais do que isso, o legado de Marielle continua com a eleição em 2018 de quatro de suas colegas de luta e de partido político para a Câmara dos Deputados e para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Elas assumiram a missão dar continuidade à pauta de defesa dos direitos humanos, contra o machismo, o racismo e a LGBTfobia6.


Nós que afirmamos que Marielle Fanco é uma mestra do mundo, somos oito mãos de mulheres, cada uma com sua experiência, sua vivência, a sua nacionalidade juntas no reconhecimento, respeito e admiração por esta Marielle Franco. Com ela somos irmãs de tantas outras negras, lésbicas, faveladas, roxas de raiva, brancas de medo, vermelhas de paixão, que amam sem preconceitos e que acreditam que fazer política é essencialmente acabar com todas as favelas do mundo, as construídas e as que estão por construir. A partir do exemplo de Marielle Franco nos juntamos e queremos, neste livro que agora se inicia, Mestras e Mestres do mundo: Coragem e Sabedoria, ser terreno, matriz e uma mátria de resistência e força.


As palavras são ação; as palavras comprometem e são compromisso. E é com estas palavras que abrimos o caminho que iremos fazer, caminhando, ao som dessa voz tão forte, mas tão forte que rompe e desestrutura. Neste momento, em que máquinas do fascismo, do medo e do ódio se multiplicam, aprendemos com Marielle a resistir e a construir engenhos de democracia, de solidariedade, de esperança e de afetos. Por isso, é tão importante a memória que aqui queremos alimentar. Para além da singularidade do metarrelato da história oficial o mais importante, a nosso ver, são a diversidade das pequenas histórias, já que é com essas que elaboramos versões de nós mesmas e nós mesmos e do nosso coletivo, como naquele conto do mercador de recordações7. Por isso, não basta dizer quem matou Marielle; o que é necessário é saber por quê foi morta Marielle e quem se beneficiou com a sua morte.


Esta é a nossa assumida missão aprendida com a mestra, celebrada todos os dias na maestria dos seus ensinamentos. Ninguém solta a mão de ninguém, Marielle!

 

 

1 Informações consultadas e retiradas do site www.upprj.com. Acesso em 6 de Fevereiro de 2019.

2 Dissertação em Administração pela Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Turismo da Universidade Fluminense do Rio de Janeiro, 2014.

3 Informações consultadas e retiradas do site: http://www.camara.rj.gov.br/. Acesso em 6 de Fevereiro de 2019.

4 Diário Oficial da União com a publicação referente à intervenção federal no Rio disponível no site:  www.imprensaoficial.gov.br. Acesso em 6 de Fevereiro de 2019.

5 Informações consultadas e retiradas do site http://www.camara.rj.gov.br/. Acesso em 6 de fevereiro de 2019.

6 BETIM, Felipe. ‘’As ‘outras’ Marielles que o Rio elegeu’’. In El País. 12 de outubro de 2018. Disponível em:

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/11/politica/1539275009_606211.html.

7 Ver o trabalho de Natália Sanchez Corrales ‘Cartografías en acción de la educación por la paz’, Bogotá, Universidade UNIANDES, 2018 (tese de doutoramento).

 

 

Referências

Franco, Marielle (2014) UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Administração Pública, do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Turismo, da Universidade Federal Fluminense.

Franco, Marielle (2017) "Mulheres na Política - Marielle Franco". Revista Subjetiva, maio-17-2017.

G1 Rio (2018) "Em mandato na Câmara, Marielle Franco defendeu minorias". Publicado em 15 de março de 2018.

 

 

Como citar

Cunha, Teresa; Arruda, Agnes; Valle, Luísa de Pinho; Cordeiro, Vânia (2019), "Marielle Franco", Mestras e Mestres do Mundo: Coragem e Sabedoria. Consultado a 28.03.24, em https://epistemologiasdosul.ces.uc.pt/mestrxs/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=28017. ISBN: 978-989-8847-08-9