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Claude Alvares 

Erick Morris
Publicado em 2021-09-15

Claude Alvares
Descolonizando a ciência, a educação e a vida1

 

Claude Alphonso Alvares é um acadêmico e ativista ambiental indiano, cujo trabalho é dedicado à descolonização da tradição britânica e ocidental na produção acadêmica do seu país, tendo como base a descolonização da ciência, das universidades, do sistema educacional e do próprio saber. Alvares tem atuado desde os meados da década de 1970 na descolonização da história científica, buscando viver mais próximo das comunidades tradicionais indianas, defendendo um modo de vida alternativo ao desenvolvimento ocidental. Nesse processo se torna um ativista ambiental e forte crítico do sistema educacional dominante da Índia. Suas ideias e atuação nessas três áreas fazem de Claude Alvares um autêntico Mestre do Mundo contemporâneo, cuja busca por coerência entre o que professa e o que vive pode e deve nos inspirar na busca por um mundo melhor e mais justo.

 

Crítico radical do eurocentrismo e do imperialismo acadêmico, Claude Alvares nasceu na primeira metade do século XX, na cidade então chamada de Bombaim, principal centro econômico e industrial da Índia, cujo nome derivava da tradição colonial portuguesa e inglesa (Bom Bahia e depois BomBay). A partir de 1995 a cidade mudaria oficialmente para o nome indiano de Mumbai, traduzido do marata. É interessante notar como a questão dos nomes da sua cidade natal parece estar relacionada com a sua própria vida e pensamento, na busca por autoafirmação e autodeterminação local, coincidentes também com o processo de independência e fortalecimento da nação indiana.


No início da sua formação acadêmica, Alvares estudou filosofia na St. Xavier's College de Mumbai, de 1967 a 1971. Como ele diria mais tarde, em suas palestras sobre descolonização das universidades, quase todo o currículo era pautado na filosofia ocidental, tratada como universal. Apenas uma pequena parte era dedicada à filosofia indiana, apesar da monumental contribuição desta para a formação do povo indiano e da sua cultura milenar. Já naquela época, compreendera que uma filosofia era tratada como universal e a outra como étnica, local. Décadas depois, ele iria destacar e aprofundar a relação dessa questão com a da separação da independência política da independência acadêmica.

 

Realiza seu doutorado na Technische Hogeschool, univesidade dos Países Baixos. Apesar de optar por estudar na Europa, sua tese, Homo Faber: Technology and Culture in India, China and the West 1500-1972, trata da desconstrução e descolonização da história científica na Índia e na China, resgatando o papel e importância destas no desenvolvimento tecnológico e científico daquelas nações e como concorrentes ao modelo hegemônico ocidental, que as submeteu por meios violentos.

 

A obra de Dharampal foi uma das grandes influências acadêmicas e científicas de Alvares, descoberta em Amsterdão por acaso. Esse feliz encontro alterou sua percepção sobre a Índia para sempre, pois lhe abriria os olhos para outras percepções sobre a história tecnológica e científica indianas (Alvares, 2000). Não muito tempo depois, ele o conheceria pessoalmente, iniciando uma amizade de várias décadas. O trabalho de Dharampal teve início na década de 1960, buscando entender lacunas na historiografia oficial, inspirada e educada na Inglaterra. É o que Alvares se refere como “as turmas que passaram por Oxbridge” (Alvares, 2000:iii), numa referência às universidades britânicas de Oxford e Cambridge, formadoras de boa parte dos historiadores indianos que reproduziram os modelos ingleses nas universidades nacionais. Parte do esforço de Dharampal foi de reexaminar os arquivos históricos dos invasores europeus (portugueses, holandeses e ingleses), com uma leitura crítica e questionadora. A partir disso, foi possível perceber estratégias de desmonte das estruturas indianas econômica, tecnológica, cultural, entre outras, que vinham acompanhadas de uma narrativa histórica em que os colonizadores, sobretudo os ingleses, aparentemente agiam em favor dos indianos, levando-lhes desenvolvimento e sabedoria, sendo que tudo que havia antes deveria ser considerado desprezível. Dharampal mostrou que a realidade não era bem assim e que era preciso recontar essa história.

 

Alvares assumiu isso como uma de suas missões e buscou apresentar a história tecnológica e científica da Índia como contraponto alternativo e viável ao desenvolvimento europeu. Mahatma Gandhi (1869-1948) foi outra influência marcante para Alvares, ajudando-o filosoficamente a se contrapor aos preceitos da ciência. Conforme ele mesmo diz, “O ataque vigoroso de Mahatma Gandhi às reivindicações sobre a verdade feitas pela ciência moderna, no seu Hind Swaraj, tem sido muito importantes para mim” (Alvares, 2010:258).

 

No retorno ao seu país, em 1977, Alvares tentou colocar em prática os novos conhecimentos adquiridos nas terras para além do Canal de Suez, como ele se refere. Tentava contribuir com o desenvolvimento rural quando rapidamente sofreu um choque cultural e de realidade. Ali, ele percebeu que seus conhecimentos eram pouco úteis para a comunidade rural e precisou rever conceitos e posturas, confrontando a prática com a teoria. Assim, aquele momento também foi muito significativo na sua formação enquanto ser humano (Alvares, 1992). É interessante perceber o movimento de práxis, de ação-reflexão-ação, na vida e pensamento de Alvares. Ao invés de pretender impor suas ideias de desenvolvimento rural, que poderiam receber apoios institucionais/governamentais, Claude busca refazer as suas próprias concepções e visões de mundo, sobretudo sobre a ciência moderna. Anos mais tarde, ele reflete um pouco mais sobre esse processo e afirma que:

 

Nenhum trabalho acadêmico pode ser tão convincente como a experiência humana (…). Se alguém ousa viver perto dos/as camponeses/as ou entre o desabrochar da natureza, a ciência moderna passa a ser percebida de modo diferente: maliciosa, arrogante, politicamente poderosa, produtora de dejetos, violenta, desconsiderada com outros modos de vida. (Alvares, 2010:259).

 

A partir de sua vida em Goa, Claude Alvares foi se aproximando cada vez mais da agricultura orgânica e do ativismo ambiental, simultaneamente continuando com suas críticas ao ocidentalismo da ciência na Índia e das relações de poder e de opressão que isso representava. Nesse processo, foi ganhando certo prestígio nos meios alternativos e ambientalistas, mas também uma série de opositores. Em parceria com sua esposa Norma Alvares (advogada ambiental), coordenam há mais de 25 anos a Goa Foundation, fundação ambientalista que conseguiu processar judicialmente grandes mineradoras, levando a questão à Suprema Corte indiana, onde obtiveram uma impressionante vitória.

 

Alvares já se envolveu em várias polêmicas que merecem destaque, como a publicação-denúncia The Great Gene Robbery (1986), na qual ele demonstra o roubo dos genes dos diversos tipos de arroz dos agricultores tradicionais por M. S. Swaminathan, um renomado cientista do governo associado a grandes empresas filipinas e estadunidenses, no International Rice Research Institute, no decorrer da chamada Indian Green Revolution. Outro momento em que Claude interveio politicamente, foi durante o quinto centenário da invasão europeia do continente americano em 1492, previsto com celebrações do governo português da chegada de Vasco da Gama em Goa, em 1498. O evento foi o palco de um debate público acalorado entre Alvares e o historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, onde parte da campanha de Alvares foi para evitar que o governo indiano e outras instituições do país participassem das festividades. Entretanto, o que pode parecer incrível, num primeiro momento, o governo da Índia aceitou, segundo Alvares, “[…] celebrar a inauguração do período colonial e da servidão de seu povo.” Após muitos protestos de diversas organizações e setores da população, as celebrações estatais foram canceladas.

 

Atualmente ele publica suas opiniões por meio do seu blog (Typewriter Guerrila - www.typewriterguerilla.com), onde também divulga seus projetos e livros. Durante muitos anos, Claude contribuiu também com artigos para diversos periódicos e revistas da Índia. Outra área de atividade de Alvares, em conjunto com outros acadêmicos, é, desde 1986, organizar uma editora alternativa, que fomentasse e publicasse obras contra-hegemônicas nas áreas de ciência, ciências sociais, agricultura orgânica e ativismo social, intitulada The Other India Press (http://www.otherindiabookstore.com/). Posteriormente, essa iniciativa se desdobraria também numa livraria, chamada The Other India Bookstore, seguindo os mesmos princípios, além de comercializar livros de escritores não-ocidentais.

 

Nas suas obras sobre as ciências e a sua descolonização, Alvares argumenta sobre a vinculação entre a ciência europeia e o desenvolvimento como instrumentos de uma dominação violenta, imperialista e cultural. Apenas alguns produtos dessa ciência teriam alguma serventia para os povos não-ocidentais (e mesmo para as populações da Europa), que seriam muito mais felizes fora do julgo e influência das potências europeias. Daí a sua afirmação numa dedicatória que faz aos filhos em um de seus livros, entrelaçando a sua vida acadêmica com a pessoal, em que indica que estes “terão que escolher entre desenvolvimento ou liberdade na sua vida” (Alvares,1992:xx). Ele articula a noção de indissociabilidade da ciência moderna europeia com o conceito de desenvolvimento, que a partir do final da II Guerra Mundial ganha a conotação atual, associada à ciência. A estas, serão associadas ideias como progresso, modernidade e emancipação. Seria isto que garantiria, por meio de um sistema complexo e dispendioso de propaganda, uma áurea de inexorabilidade da realidade que nos circunda. No entanto, ele aponta que, na verdade, o desenvolvimento é uma etiqueta para saque e violência.

 

Criticando a maneira como a Índia seguiu esse padrão de desenvolvimento, Alvares aponta os porquês de muitos indianos resistirem ao chamado da então primeira ministra indiana, Indira Gandhi, para levar a ciência para todos os grupos sociais: “[…] na realidade isso demandava grandes sacrifícios, mais trabalho em troca de meios de vida menos seguros. Exigia-se o abandono da subsistência, e da sua relativa autonomia, em favor da dependência e insegurança da escravidão assalariada” (Alvares, 2010: 251). Para Alvares, conhecimento é poder e poder é conhecimento, já que o poder decide o que é válido em termos de conhecimento. É nesse sentido, que Claude interpreta a ação “democratizadora” da ciência, que ele entende como uma verdadeira violência epistêmica: “os diversos ‘people´s science movements’ indianos levaram esse projeto muito a sério, funcionando com um establishment não-oficial, tentando galantemente substituir a ciência do feiticeiro ou tantrik da vila pelo barbarismo dos tratamentos de choques elétricos e lobotomias frontais da ciência moderna” (Alvares, 2010: 256).

 

De acordo com essa visão, não é suficiente buscar democratizar e/ou humanizar a ciência europeia. Para ele, esta é, por essência, violenta e excludente, o que garante sua continuidade. Além disso, os próprios efeitos não violentos da ciência são meros acidentes de percurso. Consequentemente, e ao contrário das esperanças dos que acreditam nos governos progressistas e desenvolvimentistas, dificilmente se justifica o argumento de que a ciência moderna deveria ser utilizada para emancipar os povos do Terceiro Mundo (Alvares, 1992). 

 

As consequências da presença científica europeia podem ser sentidas em vários âmbitos, com destaque para a educação. Segundo Alvares, não houve descontinuidade nos processos educacionais, nem nos níveis básicos e nem no chamado ensino superior, que para ele é apenas uma repetição das universidades ocidentais. “Pensar que tal sistema de aprendizagem – instalado e forçado por um governo colonial, que exigia obediência – seria continuado, apoiado e expandido por um governo livre após a independência é algo extremamente difícil de entender hoje”2. Para ele, é uma loucura que alguém em boa sanidade mental, se mantenha dentro de um curso universitário e ainda continue para um mestrado e doutoramento, pois a pessoa que faz isso torna-se mais inteligente em um assunto e limitada para a vida3.

 

As passagens acima apontadas, retratam bem o entendimento que Alvares tem das escolas. Para ele, o sistema educacional de todo o mundo, sobretudo o indiano, é uma máquina de formatar as pessoas. Na realidade, Claude afirma que as escolas foram pensadas de uma maneira para potencializarem ao máximo um ambiente de não-aprendizagem. No seu entendimento, as crianças aprendem muito mais fora da escola do que nela e, falando da sua própria experiência como pai, Alvares afirma que “uma das emoções que vivenciou foi de perceber o impacto geral negativo do sistema escolar nos seus três filhos, pois notavam que eles eram mais felizes enquanto estavam fora da escola”4

 

Por conta dessa percepção, junto com a noção das origens coloniais do sistema educacional indiano, Claude e sua esposa Norma, proeminente advogada ambientalista5, optaram por “libertar” os filhos, por um ano, como um gap year (ano de interrupção), antes de entrar no ensino médio. Eles tiveram total liberdade para se descobrirem e desenvolverem suas aptidões e ambições pessoais. Estiveram livres das obrigações de frequentar todos os dias o mesmo espaço para ouvir uma repetição assuntos, muitas vezes desconectados de suas realidades. Além disso, não tinham a pressão de estudar para as provas e trabalhos escolares. Assim, puderam desenvolver sua autodisciplina (swa-raj) e conhecer um pouco mais sobre a sociedade em que viviam e da natureza do país, além de interagir com pessoas de várias gerações (Alvares)6. O resultado dessa experiência foi uma maior autonomia para os três filhos, Rahul, Sameer e Milind, escolhendo quais os caminhos a seguir pela vida. Nesse processo, o filho mais velho, Rahul, aos dezesseis anos publicou um livro relatando as suas experiências nesse gap year, intitulado de Free from school7


A partir da experiência acadêmica, mas também com seus filhos, Claude coordena o Multiversity (www.multiworldindia.org), um projeto sobre educação lançado em 2002, que desafia todos os pais e mães a seguirem esse exemplo ou até de ir mais longe e não forçar os seus filhos e filhas ao processo deseducador da escola. Alvares amadureceu essa posição por meio da análise dos processos de colonização britânica da Índia e da tentativa de descolonizar todas as esferas da vida indiana. Dessa forma, a Multiversity lança como proposta a rearticulação curricular das ciências sociais por meio de uma rede de acadêmicos e estudiosos da educação e das ciências sociais da América Latina, África e Ásia8, com o intuito de valorizar as culturas e tradições indianas, chinesas e de todos os povos não-ocidentais. A proposta busca romper com o academicismo e com a centralidade do texto escrito como forma de conhecimento. Com isso, outras formas de conhecimento e de saber têm espaço para emergir. Assim, grande parte do conhecimento das culturas não-ocidentais entra no diálogo dos/as participantes em igualdade de condições. Outra questão relevante é a não certificação, prática recorrente nos espaços de formação alternativos, pois o conhecimento deve ser livre e compartilhado, evitando a participação em busca de diplomas.

 

É relevante destacar que os idiomas a utilizar nos eventos privilegiam as línguas nativas, ao contrário das grandes universidades da Índia e de outros países. Todas as atividades são realizadas ao nível local, em seções de cada país (Índia, Malásia etc.), com autonomia para o planejamento e a ação, com socialização para os demais membros, desde que de acordo com os princípios mencionados. As atividades podem ocorrer tanto com foco em pessoas dentro da estrutura universitária ou escolar, como fora dela, seja por pessoas com formação acadêmica ou não. Ainda em fase de estruturação, com a consolidação da rede de intelectuais e educadores/as nas regiões não-ocidentais do mundo, o impacto desejado pela Multiversity não poderia deixar de ser ousado, conforme Alvares afirma:

 

O seu impacto nas práticas de aprendizagem da espécie humana deveriam ser similares à de um terremoto, capaz de sacudir a base estrutural. Nada menos deveria se esperar se existe o desejo de romper completamente com o passado colonial e de restabelecer livremente o controle para as diversas comunidades locais sobre o futuro das sociedades de aprendizagem9.

 

Suas ideias e críticas radicais à ciência, ao desenvolvimento e ao eurocentrismo podem ser contestadas e debatidas, mas com certeza servem como referências para reexaminarmos o nosso modo de pensar o conhecimento a partir do Sul Global de maneira independente. Mais do que as palavras, seu exemplo de vida faz dele um Mestre do Mundo. Ele continua a viver em Goa, militando por um mundo ambientalmente e cognitivamente mais justo.


REFERÊNCIAS

  • Alvares, Claude (2010), “Science”, in SACHS, Wolfgang (Org.), The Development Dictionary: a guide to knowledge as power. Londres: Zed Books Ltd, 243-259.
  • Alvares, Claude (2000), “Making History”, in Dharampal, Indian Science and Technology in the Eighteenth Century. Goa: Other India Press, i-xv.2012
  • Alvares, Claude (1992), Science, Development and Violence: The Revolt Against Modernity. Delhi: Oxford University Press.
  • Alvares, Claude (1991), Decolonising History: Technology and Culture in India, China and the West, 1492 to the Present Day. Goa: The Other India Press.

VIDEOS


NOTAS

 

Como citar

Morris, Erick (2019), "Claude Alvares ", Mestras e Mestres do Mundo: Coragem e Sabedoria. Consultado a 29.03.24, em https://epistemologiasdosul.ces.uc.pt/mestrxs/?id=23838&pag=23918&id_lingua=2&entry=35262. ISBN: 978-989-8847-08-9