Entrevistámos a investigadora e professora auxiliar Sara Araújo sobre o Ensino Superior e os desafios que se lhe impõem. Antes de passar para as perguntas, pedimos que se apresentasse e falasse um pouco do seu percurso académico e da sua carreira como investigadora e professora.
«Eu sou investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra desde 2005. Antes disso comecei a trabalhar, ainda durante o meu último ano da licenciatura, como assistente de investigação - hoje é uma designação que não se usa, mas digamos que era investigadora júnior do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, e ainda durante o último ano da licenciatura comecei a trabalhar na área da sociologia do direito. Na altura não foi uma escolha, foi onde apareceu esta oportunidade, e portanto eu trabalhava em diferentes tipos de estudos, numa equipa relativamente grande e multidisciplinar.
Passado uns anos, quando já estava a fazer mestrado, houve uma oportunidade de eu ir a Moçambique, no âmbito de um projeto de investigação que era uma parceria entre o CES e o Centro de Formação Jurídica e Judiciária em Moçambique. Houve um projeto para dois anos que visava fazer uma proposta de revisão de organização judiciária, e fui assim para Moçambique. Devo dizer que é nessa altura que também começo a aproximar-me mais de algumas leituras pós-coloniais, nomeadamente do que estava a ser desenvolvido no CES. O professor Boaventura de Sousa de Santos, com quem eu trabalhava desde sempre, estava naquele momento a desenvolver aquilo que é hoje conhecido como a Proposta Epistemológica das Epistemologias do Sul [i], e na altura essa proposta estava em crescimento e foi bastante interessante porque, acima de tudo, ao ir para Moçambique pude participar em algumas das excursões e brainstormings que iam acontecendo no âmbito de uma equipa alargada, com investigadores mais experientes do que eu, tendo oportunidade de participar nestas discussões. Ao mesmo tempo, também acabei por ficar durante 7 anos a viver, trabalhar e fazer investigação em Moçambique, o que me deu não só uma grande experiência ao nível do trabalho de investigação de terreno, mas também me permitiu conhecer realidades diferentes daquelas que eu poderia conhecer estando aqui em Portugal. De alguma maneira, foi isso que permitiu que eu desenvolvesse o meu grande gosto e entusiasmo pela investigação, coisa que não tinha sentido durante os meus primeiros anos como assistente de investigação. Quando vou para Moçambique, percebo que há um tipo de trabalho que eu tenho especial interesse em fazer, e que é esse que me motiva.
Depois, voltei para Portugal, para fazer o doutoramento em Sociologia do Direito. Seguidamente, entrei no projeto do professor Boaventura de Sousa Santos, de implementação e experimentação das Epistemologias do Sul, que era o projeto Alice: Espelhos Estranhos, Lições imprevistas [Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo (2011-2016)][ii]. Trabalhei também num outro projeto, sobre a justiça na Europa, e também num projeto sobre pluralismo jurídico em Timor-Leste. Fui fazendo várias outras coisas neste processo, mas diria que este foi o meu percurso, que foi sempre lidando com equipas muito multidisciplinares e internacionais.
Devo dizer que não me via, até há pouco tempo (se calhar nos meus primeiros anos) como docente – tinha um grande fascínio pela investigação, era a minha paixão. É muito curioso que quando experimentei o trabalho de docência foi uma grande surpresa para mim, porque descobri que era algo que gostava de fazer e que não sabia que viria a acontecer. Não foi uma coisa que eu tivesse procurado antes, precisamente porque não sabia que iria gostar tanto, e tem sido uma experiência absolutamente extraordinária durante estes últimos 3 anos, que foi quando comecei a dar aulas na FEUC.»
O tema geral desta edição da revista é o ensino e a Academia, e esta entrevista teria um foco no papel do género no ensino e na Academia, que é também uma lente que o seu trabalho foca frequentemente. Em referência a um dos trabalhos que acabou de mencionar, Pluralismo jurídico e emancipação social, instâncias comunitárias de resolução de conflitos em Moçambique [iii], onde aborda as justiças comunitárias e o acesso à justiça, mais especificamente a posição das mulheres: Porque acha pertinente trazer a questão do género para a análise do real?
«Acho que o género é algo que é pertinente utilizarmos enquanto dimensão analítica para tudo o que seja que vamos estudar. Eu trabalho com enfoque; as próprias epistemologias do Sul dão esse enquadramento, no sentido em que trabalham a partir de uma perspetiva que procura ter em conta as três grandes formas de dominação da Modernidade, sendo uma delas o Patriarcado, outra o Colonialismo e outra o Capitalismo. A questão de género é particularmente relevante para mim, tendo em conta que não só sou investigadora, como sou uma investigadora feminista que acha que a Academia precisa de um ativismo no sentido da despatriarcalização da universidade. Creio que a questão de género é uma dimensão de análise que felizmente começa a ser não apenas uma área de estudos, porque aquilo que tínhamos na Academia era o género a aparecer dentro dos estudos feministas (o que continua a existir e é ótimo que exista), mas depois temos também este crescimento em que o género começa a aparecer como uma dimensão fundamental de análise. Independentemente de qual seja o trabalho que estejamos a fazer, o patriarcado é estrutural e portanto o nosso olhar tem que estar presente na dimensão da questão de género.
De que modo podemos pensar o ensino e a Academia numa perspetiva de género?
«Essa questão tem muitas dimensões. A primeira coisa que acho importante dizermos é que a sociologia nos mostra bem que o patriarcado é estrutural, e portanto nós temos de ser consequentes até nas coisas que dizemos, e perceber o que elas significam. Falamos muitas vezes nesta questão da opressão estrutural – que o racismo é estrutural, que o patriarcado é estrutural – o que significa isto? Entre muitas outras coisas, isto significa que o patriarcado nos atravessa e cria tabuleiros desequilibrados onde quer que seja que nós estejamos a jogar. Acho que não devemos ter embaraço em dizer que o patriarcado atravessa a Universidade, e que existe sexismo na Universidade, e dentro da Academia – devemos até reconhecê-lo e, portanto, lidar com aquilo que existe sem termos medo de reconhecer a sua existência. Nós sabemos que por mais feministas que possam ser as universidades ou os departamentos, o sexismo vai atravessá-las.
Como é que enfrentamos isto? Há várias formas de pensarmos esta questão. Desde logo, existe a questão de que a mulher, dentro de uma universidade, vai estando muitas vezes sujeita a sistemas de validação que foram concebidos por homens brancos. Vão aparecendo cada vez mais, e temos aqui as epistemologias feministas negras, nomeadamente no trabalho e sociologia da Patricia Hill Collins [iv], mas outras mulheres que têm vindo a mostrar a necessidade de trazermos para dentro da Universidade outras formas de validação. Isto vai ter impacto não apenas no nosso trabalho como mulheres dentro Academia, portanto, na forma como a Academia nos trata, mas também nas possibilidades de criação que existem dentro da Universidade.
« ... que o patriarcado nos atravessa e cria tabuleiros desequilibrados onde quer que seja que nós estejamos a jogar. Acho que não devemos ter embaraço em dizer que o patriarcado atravessa a Universidade, e que existe sexismo na Universidade, e dentro da Academia. »
Não estamos apenas a falar de abrir as Universidades, que elas sejam espaços mais inclusivos ou menos violentos para as mulheres. Estamos a falar também da possibilidade de trazer outras formas de validação do conhecimento, outros tipos de conhecimento, porque grande parte ou uma parte substancial das formas alternativas àquelas que hoje conhecemos dentro das universidades têm origem no trabalho de mulheres, feministas negras, e eu creio que é fundamental trazê-los. Portanto, há aqui mais do que uma dimensão de género: se quisermos olhar para isto terá sempre de ser de uma perspetiva interseccional, mas pensando sempre que a interseccionalidade não olha apenas para a violência que é exercida sobre corpos, mas tem de ser pensada também em relação aos silenciamentos que criou, nomeadamente às dimensões e formas de conhecimento que desapareceram de dentro das universidades, e que é muito importante trazer de volta. E elas excluem pessoas, mas não podemos esquecer uma coisa: quando falamos de excluir pessoas, estamos também a falar de excluir vozes, de excluir conhecimento, e portanto o que estou a falar aqui (e obviamente não estou a inventar nada, estou a dizer aquilo que outras mulheres já disseram e escreveram) é que temos de as trazer mais para dentro das universidades, e fazer exercícios de incluir mais vozes dentro dos programas.
Acho que aí, devo dizer-vos, os alunos têm um papel importante, as alunas têm um papel importante, porque eu sinto neste momento que as estudantes e os estudantes estão mais atentos a este tipo de questões: por exemplo, fazer uma entrevista, perguntas que às vezes fazem nas aulas, tipos de trabalhos que estão neste momento a fazer, e isso, devo dizer, desafia-me. Saber que há estudantes atentos a estas questões desafia-me a, por exemplo, tentar fazer programas que sejam mais compatíveis com o que eu defendo. Isto é, continuar a afirmar a necessidade de fazer a universidade mais feminista. Tenho feito um esforço, cada vez mais, para ter programas paritários, que tenham tantos homens como mulheres, ou pelo menos que tenham pessoas de vários lugares, vozes de vários lugares do mundo, quer de países do norte quer de países do sul, que possam trazer aqui diferentes formas de conhecer e pensar, e diferentes pontos de vista. Mas faço-o muito porque vejo cada vez mais os alunos a terem abertura, e os próprios alunos e alunas a cobrarem essas questões – e acho que fazem muito bem, acho que os estudantes e as estudantes têm direito e devem também cobrar-nos uma maior coerência entre aquilo que nós apresentamos nos programas e aquilo que dizemos. Acho que isso é ótimo para toda a gente.
« ... a interseccionalidade não olha apenas para a violência que é exercida sobre corpos, mas tem de ser pensada também em relação aos silenciamentos que criou, nomeadamente às dimensões e formas de conhecimento que desapareceram de dentro das universidades, e que é muito importante trazer de volta »
Qual é a relação entre a evolução do ensino no sentido da democratização e a persistência de estruturas patriarcais na sociedade moderna? Como é que o facto de numa sociedade, como alguns autores referem, pós-industrial, mais pessoas terem acesso ao ensino, nomeadamente pessoas da classe trabalhadora, mulheres, filhos de imigrantes, se relaciona com as estruturas patriarcais? Há uma emancipação ou estas estruturas patriarcais simplesmente persistem ou são suavizadas?
«Há um maior acesso à Universidade, ela abre-se, e como é que isso a transforma? Se entram mais mulheres para a universidade significa que vamos ter uma Universidade mais feminista? Se entram mais pessoas negras, significa que vamos ter uma universidade mais antirracista? Vou falar da questão das mulheres porque é a experiência que eu acho que posso partilhar melhor. Mas é uma pergunta difícil, porque creio que é fundamental começar por aí; tem que haver uma abertura da universidade a uma maior diversidade.
Mas abrir a Universidade a pessoas negras ou às mulheres não se traduz imediatamente na sua despatriarcalização ou descolonização, porque a verdade é que ela pode ser aberta sem se alterarem os sistemas de validação e as estruturas do poder. O que nós temos visto acontecer, por exemplo, é que as mulheres para se afirmarem dentro da Universidade ou nos vários sítios onde possam estar, têm muitas vezes de incorporar os códigos de validação que já existem para poderem superar, inclusive, o enviesamento que existe contra elas. Isto é, sendo mulheres, se calhar terão de entrar ainda mais numa lógica de defesa, de se aproximarem daquilo que se requer nos sistemas de validação para poderem progredir; quando aquilo que queremos são pessoas que entrem, mulheres que entrem, e queremos a oportunidade de transformar, precisamente. Trazer outras formas de conhecimento, trazer um tipo de conhecimento que foi desenvolvido nas lutas sociais pelas mulheres, e daí que as feministas negras tenham estado muito à frente nesta discussão, partindo das lutas sociais das mulheres negras e do conhecimento que é construído no âmbito dessas lutas sociais. Mas isto, obviamente, não é imediato; isto faz-se através do ativismo depois dentro da universidade. É como tudo: em qualquer profissão ou lugar onde eu esteja como mulher, posso sempre ter de fazer um ativismo feminista para despatriarcalizar o lugar onde estou.
« ... as mulheres, para se afirmarem dentro da Universidade ou nos vários sítios onde possam estar, têm muitas vezes de incorporar os códigos de validação que já existem para poderem superar, inclusive, o enviesamento que existe contra elas.»
Ao contrário do que muitas vezes a Universidade julga, ela não está desinserida da sociedade. A Universidade está inserida na sociedade, portanto não basta que as mulheres entrem na Universidade. Nós precisamos de mulheres que sejam feministas e que estejam dispostas a fazer esse ativismo, porque como é óbvio, existe um sistema de validação que não é feminista e que não valida outras formas de conhecimento. Quando falo de outras formas de conhecimento é, por exemplo, valorizar-se mais lógicas de solidariedade, éticas de cuidado, valorizar-se o papel das emoções, da empatia, o estar presente nas lutas, ou seja: trazer de outros lugares onde isto é valorizado para dentro da universidade, alargando o tipo de conhecimento que existe dentro desta.
Atenção: nada contra o conhecimento científico, mas este tem os seus limites, portanto o que nós deveríamos fazer era alargá-lo a outras formas de conhecimento, o que implica alargar os critérios de validação do conhecimento. Portanto, existe aqui toda uma discussão epistemológica que é muito importante que seja feita e que, na verdade, tem vindo a ser feita, sobretudo pelas feministas, muito pelas feministas negras e muito pelos investigadores e investigadores negros nas universidades. Eu creio que a grande parte das discussões a que estamos a assistir agora - dos EUA vem a questão dos Critical Racial Studies, ou as questões feministas que estão a ser trazidas para cima da mesa, inclusive cada vez mais por alunos e alunas - já são um bocadinho resultado de alguma dessa abertura da universidade a corpos e a experiências que não estavam dentro dela, a lugares de enunciação que não estavam dentro da universidade.
Portanto, creio que isto vai ter efeitos; não é automático, e é importante refletirmos sobre estas questões, até para nos desviarmos um bocadinho daquelas perspetivas, que eu acho muito superficiais, do género « uma mulher e um homem são iguais» ou «isto não vai mudar nada», ou « o que interessa é a competência das pessoas»; não. O que nós estamos a falar aqui é de ter diferentes experiências, diferentes tipos de conhecimento que estão associados a diferentes grupos, e deixar de validar e valorizar um único tipo de conhecimento. Portanto, quanto mais diversa for a universidade, melhor é a universidade. E mais diversa não só em termos de cor, que às vezes nas questões identitárias as pessoas esquecem-se que não estamos a falar apenas numa celebração estética da diversidade; estamos a falar da necessidade de trazer diferentes pontos de vista, diferentes formas de pensar, de conhecer, e diferentes experiências que se podem traduzir também depois em diferentes tipos de resultados que são fundamentais para alterar as estruturas e as lógicas de poder dentro da universidade. Eu acho que nós não nos podemos esquecer nunca de uma coisa: a questão das identidades, que está muito em voga, é uma questão de poder, sobre quem é que pode distinguir o que conta como verdade do que é desprezado como sendo conhecimento que não é verdadeiro ou relevante.»
« ... ter diferentes experiências, diferentes tipos de conhecimento que estão associados a diferentes grupos, e deixar de validar e valorizar um único tipo de conhecimento. Portanto, quanto mais diversa for a universidade, melhor é a universidade. »
Passando para outra pergunta, como explicaria a tendência histórica da presença da mulher no ensino primário e a profissão a ser associada ao feminino, enquanto que o ensino superior é tipicamente dominado pelo homem no contexto de uma divisão do trabalho capitalista?
« Estou certa que existem estudos sobre isso, e eu não os conheço. Portanto, o que quer que seja que eu vá dizer, pode vir alguém dizer que não é compatível. O que eu posso é tentar pensar um bocadinho sobre estas questões, eventualmente. Nós sabemos que o capitalismo reservou às mulheres um lugar na esfera da reprodução, ou aquilo que o capitalismo definiu como a esfera da reprodução, por oposição à esfera da produção. Isto é, e está estudado, pela Silvia Federici [v] e por outras feministas, que mostram que o patriarcado não é algo em vias de extinção, que vai desaparecer com o tempo. Esta ideia linear do desenvolvimento é uma ideia bastante eurocêntrica, diga-se de passagem, e é uma ideia muito questionável, que supõe que o desenvolvimento vai equilibrar as coisas e levar à igualdade. Não é assim: o desenvolvimento de que normalmente estamos a falar é um desenvolvimento capitalista – mesmo quando falamos de desenvolvimento alternativo estamos a falar de desenvolvimento capitalista – e o capitalismo está muito associado a esta divisão de tarefas em que os homens asseguram a área produtiva e as mulheres, a reprodutiva. E chama-se reprodutiva como se ela não fosse tão importante e tão produtiva quanto aquilo que foi chamado a esfera produtiva. Mas foi muito importante chamar lhe reprodução, reprodução social, porque isso também ajuda a diminuir aquilo que é, ou a reificar esta categorização da mulher num lugar subalterno, de inferioridade.
Portanto, eu creio que as mulheres podem ser facilmente associadas à docência de crianças, porque isso é muito na esfera da reprodução (isto são hipóteses que eu estou a lançar, da leitura que eu vou fazendo). Mas quando se chega à esfera da universidade, já não estamos a falar da educação de crianças, mas sim de criar conhecimento. E criar conhecimento é poder: nas universidades cria-se o conhecimento, define-se o que é verdade do que não é verdade; quais são os caminhos por onde se deve ir e os caminhos por onde não se deve ir; quem são as vozes credíveis e quem não são as vozes credíveis. Portanto, há aqui muito poder dentro, e esse poder não poderia ser entregue à mulher.
O poder para educar as crianças é, atenção, fundamental - estou a falar aqui daquilo que são as lógicas que se pensam dentro das sociedades modernas e capitalistas, porque acho que o papel da educação das crianças é um papel absolutamente central nas sociedades. Acho que o papel da reprodução social é absolutamente fundamental; o cuidado é central nas nossas sociedades, mas o capitalismo reservou-lhe totalmente um lugar pouco relevante, e daí que ele seja gratuito e que ele possa ser gratuito. Portanto, o que o capitalismo assegura é que mesmo depois da entrada das mulheres no mercado de trabalho, continuamos a ter hoje as mulheres responsáveis pelo cuidado, e não vale a pena tapar o sol com a peneira porque as coisas têm mudado a uma velocidade muito lenta. Nós vemos o que aconteceu com a pandemia: quando se deu o confinamento, houve uma descida dos trabalhos publicados das mulheres, não dos homens; porque não foram os homens que foram prejudicados pelo facto de as crianças ficarem em casa. Quem efetivamente parou a sua produtividade porque ficou encarregue de cuidar das crianças, dos avós ou dos mais velhos, foram sobretudo as mulheres. Este é o lugar que normalmente lhes é reservado – o lugar de quem define o que é a verdade é, dentro deste sistema patriarcal, um lugar masculino e portanto eu creio que dentro das universidades temos ainda muito, muito a fazer.
« ...Acho que o papel da reprodução social é absolutamente fundamental; o cuidado é central nas nossas sociedades, mas o capitalismo reservou-lhe totalmente um lugar pouco relevante, e daí que ele seja gratuito e que ele possa ser gratuito ... »
Ainda em Pluralismo Jurídico e Emancipação Social, cita Osório e Temba, onde refere que as relações de poder são orientadas por mecanismos de socialização que fixam as mulheres numa posição subalterna. Estava mesmo agora a referir que continuamos com esta posição. Considera que o progresso da entrada das mulheres para o ensino e da sua abertura estão a criar uma emancipação desta posição subalterna ou é quase uma « fachada » e criam-se novas posições subalternas dentro de um contexto diferente do ensino e da academia?
« As mulheres estão a entrar para dentro das Universidades, mas elas não necessariamente entram para lugares de poder. Eu creio que as mulheres enfrentam sexismo dentro das Universidades. Creio que existe um enviesamento generalizado; um homem que está dentro de uma universidade não precisa de provar mais que é um bom académico: abre a boca, e as pessoas assumem que ele chegou ali e que é um bom académico. Tenho muitas dúvidas que seja assim que se olham as mulheres. Creio que as mulheres têm ainda mais a provar do que os homens – são muito mais escrutinadas, sem dúvida, do que os homens.
Agora, eu não sou pessimista; creio que há muitas mulheres feministas a fazerem coisas muito importantes dentro da universidade, cada vez mais a assumirem posições importantes em que podem fazer a diferença; e creio também que há homens que, cada vez mais, começam a estar conscientes desta questão e que são solidários nesta luta. Eu devo dizer que sou muito cética da lógica da guerra dos sexos, acho que não é por aí. O meu problema não é com os homens; o meu problema é com o patriarcado. Agora, uma coisa é certa: os homens são beneficiados por este sistema, quer queiram quer não queiram. O que eu creio é que nós precisamos que haja cada vez mais consciência desse privilégio, e deve ser uma transformação que deve procurar ser feita por mulheres e por homens. As mulheres estão a fazê-la, muito mais do que os homens, devo dizer. Acho que é muito mais fácil para os homens… Há uma questão aqui: as pessoas às vezes ficam cansadas. Isto é, se eu hoje estiver numa reunião e disser que alguma coisa é sexista, as pessoas vão entender. Se eu amanhã disser que outra coisa é sexista, mais ou menos. Se eu todos os dias disser que alguma coisa é sexista, a determinada altura as pessoas dizem « já não tenho paciência para aturar isto » (não estou a focar-me em nenhuma situação concreta, apenas a dar um exemplo para se compreender). Isto significa que, muitas vezes, as pessoas compreendem mas não assumem isto como um assunto fundamental, ou seja: se eu falo de sexismo hoje e falo de sexismo amanhã e depois de amanhã, é porque lamentavelmente o sexismo está presente todos os dias. E há uma espécie de maldição de quem é ativista, porque a partir do momento em que nós temos uma lente feminista, ou uma lente pós-colonial ou antirracista, ou uma lente que vê os malefícios do capitalismo, lamento, mas nós não conseguimos deixar de ver!
Portanto, a partir do momento que a minha lente é feminista e ela consegue identificar situações de desigualdade de género, ela não para, e às vezes é quase uma maldição, e eu às vezes queria descansar. Creio que isto é uma coisa que acontecerá de forma generalizada, e às vezes preferia não ter percebido que aquilo foi uma atitude sexista só para descansar por um dia, é muito cansativo. Portanto, acho muito curioso quando as pessoas fazem observações do género « fico cansado de estarem sempre a fazer acusações sexistas »; pois, imagina, eu fico extremamente cansada, e as mulheres ficam extremamente cansadas tanto do sexismo que se vê nas universidades, como do racismo que acontece. Enfim, são coisas complicadas.
« ... creio que há muitas mulheres feministas a fazerem coisas muito importantes dentro da universidade, cada vez mais a assumirem posições importantes em que podem fazer a diferença; e creio também que há homens que, cada vez mais, começam a estar conscientes desta questão e que são solidários nesta luta .. »
Eu tenho fé nalguma emancipação, aquilo a que nos referimos quando falamos de «reificar » as mulheres – não há aqui nenhum pessimismo quando falamos da “reificação” das mulheres – muito contrário. Quando eu vejo exemplos como o vosso interesse nestes temas, e de outras e outros estudantes, ou mulheres no mestrado, logo que acabam a licenciatura, com menos de 25 anos ou menos de 30 anos que estão neste momento a entrar numa academia onde já se discutiam estas questões. Eu tenho aprendido muito com feministas jovens, mas jovens no sentido de já não estarem à espera que as coisas passem da teoria à prática – já não aceitam que a prática não seja coincidente com a teoria, o que eu acho que é muito importante que sejamos cada vez mais exigentes, fazendo um ativismo que não é apenas o ativismo tradicional dos movimentos sociais, que continua a ser fundamental, das organizações e das marchas, mas também aquele ativismo que temos de fazer todos os dias: não fechar os olhos às situações que acontecem, não fingir que não vemos, não fingir que as coisas não estão lá. E eu tenho visto isto dentro das universidades, e devo dizer que isso me dá alguma expectativa de que as coisas se vão transformando – estão a transformar-se, só o facto de estarmos aqui a falar sobre estas questões, isso significa que as coisas estão a ocorrer, e para mim isso é uma mensagem boa que está a ser dada.
Nesta entrevista já focámos nas questões de género, nas questões económicas, e agora queríamos focar na diferença entre o Sul e o Norte, para acabar. De que modo na divisão internacional do trabalho se refletem as diferenças entre a Academia do Sul e do Norte e de que modo o Sul também pode experienciar uma democratização e integração da mulher na Academia e no Ensino Superior?
«Essa é uma pergunta muito difícil, particularmente por uma razão: eu não posso falar pelas experiências que eu conheço menos bem, o Sul é uma coisa diversificada e o Norte também é uma coisa diversificada. Uma coisa para mim é: eu creio que há algo aqui que é mais importante do que a geografia onde se situa a universidade. O eurocentrismo é uma coisa que existe no Norte e no Sul. A maior parte das universidades que vamos tendo pelo mundo são universidades que foram desenhadas a partir das epistemologias do Norte, isto é, do sistemas de avaliação da verdade definidos pelo Norte. Se formos ver um curso de sociologia nos vários lugares do mundo, se calhar anda toda a gente a ler Marx, Weber, Durkheim e os clássicos da sociologia – são homens brancos europeus. E depois, o que vamos vendo é alguma resistência que vem a ser feita, os estudos pós-coloniais a entrarem, os feminismos a entrarem, mas isso é um ativismo que está a ser feito a partir de diferentes lugares.
O que me podem perguntar é sobre outros modelos de universidades, e elas existem. Existem outras formas de universidade – nós temos vários estudantes de doutoramento no CES que estão a fazer trabalhos sobre as universidades populares que existem no mundo. Nós temos, por exemplo, uma experiência que foi desenvolvida a partir do Fórum Social Mundial, a partir de 2003, que depois veio a ser integrada como experiência no âmbito do projeto ALICE, que tem um grande cunho do Professor Boaventura de Sousa Santos, que é a Universidade Popular dos Movimentos Sociais [vi] , e ela tem funcionado em vários lugares do mundo, precisamente numa lógica de produção da ecologia de saberes. Isto é, assumindo que as nossas formas de conhecimento são todas elas incompletas e parciais, esta universidade vai funcionar com workshops de dois dias (poderia até por exemplo ser uma iniciativa de estudantes, que poderiam tentar criar uma), com grupos relativamente pequenos, entre 30 a 40 pessoas é o ideal, e funciona no máximo com apenas 1/3 de intelectuais ou académicos, e 2/3 de ativistas, que devem pertencer a diferentes movimentos sociais. Imaginem que queremos estudar a descolonização da universidade, mas não iríamos trabalhar só com académicos – iríamos falar da descolonização da universidade e, por exemplo, convidar alguns intelectuais, homens, mulheres, académicos, académicas, para estarem presentes, mas trazer também por exemplo representantes de sindicatos, ativistas ciganos, ativistas do movimento antirracista… Sendo que os académicos também podem pertencer a estes coletivos; a ideia é que sejam académicos e académicas eles próprios com alguma ligação ao ativismo. Mas depois temos aqui uma interpretação daquilo que seria, por exemplo, a descolonização da universidade, mas a partir de conhecimentos diversificados: os trabalhadores, as comunidades ciganas, outras comunidades racializadas, coletivos feministas, a partir de outras organizações e movimentos sociais que fossem importantes.
Isto é um exemplo de uma coisa alternativa que está a ser construída, mas depois existem os exemplos clássicos das universidades populares que são formas de democratização da promoção do conhecimento e também da sua disseminação. Existem algumas de tipo europeu, mas uma grande parte delas são modelos que foram desenvolvidos na América Latina. Eu creio que as universidades convencionais poderiam aprender bastante com as experiências destas universidades populares onde se traz diferentes tipos de conhecimento, e diferente público também, para quem passam esse conhecimento.
Obras, projetos e autores referidos ao longo da entrevista:
[i] Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula. (Orgs.) (2009) Epistemologias do Sul.
[ii] Projeto Alice: https://ces.uc.pt/pt/investigacao/projetos-de-investigacao/projetos-financiados/alice
[iii] Araújo, Sara. (2005). Pluralismo jurídico e emancipação social: instâncias comunitárias de resolução de conflitos em Moçambique. 11th CODESRIA General Assembly, 1-12.
[iv] Patricia Hill Collins: https://www.asanet.org/about/governance-and-leadership/council/presidents/patricia-hill-collins
[v] Federici, Silvia (2020) [primeira edição em 2004] Calibã e a Bruxa - As Mulheres, o Corpo e a Acumulação Original. Lisboa: Orfeu Negro.
[vi] Universidade Popular dos Movimentos Sociais:http://www.universidadepopular.org/site/pages/pt/sobre-a-upms.php
Sobre a entrevistada:
Sara Araújo é investigadora do CES e professora auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Doutorada em “Direito, Justiça e Cidadania no século XXI”, participou em inúmeros projetos de investigação, destacando-se o Projeto Alice. Pertenceu, entre outros, ao Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.