Continuam proliferando, por aqui (Brasil), discussões sobre neoconstitucionalismo, diferenciação entre princípios e regras, posições contramajoritárias clássicas, precedentes da Suprema Corte dos EUA e ativismo judicial. Pouco se analisam, no âmbito constitucional daqui, as questões de descolonização, interculturalidade, plurinacionalidade e jurisdição indígena”. Uma análise do César Augusto Baldi.
Artigo publicado na 37 edição do Jornal Estado de Direito.
No Equador e na Bolívia, os novos processos constitucionais abriram possibilidades de repensar a justiça constitucional e, em particular, a diversidade étnica, cultural, política e epistêmica que têm marcado as sociedades latino-americanas e que vinha sendo ignorada pelo constitucionalismo moderno, decimonônico e eurocentrado. No Brasil, contudo, parte dos constitucionalistas tem imaginado que tais inovações jurídico-políticas não merecem grande importância, permanecendo apegados a parâmetros de constituições europeias e prisioneiros de um colonialismo interno avesso às contribuições dos países vizinhos. Continuam proliferando, por aqui, discussões sobre neoconstitucionalismo, diferenciação entre princípios e regras, posições contramajoritárias clássicas, precedentes da Suprema Corte dos EUA e ativismo judicial. Pouco se analisam, no âmbito constitucional daqui, as questões de descolonização, interculturalidade, plurinacionalidade e jurisdição indígena. Mesmo contribuições interessantes vindas da linha jurisprudencial colombiana, pós-1991, têm sido solenemente ignoradas. Destaquem-se apenas algumas que poderiam dar novas ênfases para discussões “surradas” na teoria constitucional brasileira.
Primeiro: aquela Corte Constitucional construiu a categoria de “estado de cosas inconstitucional”, por ações e omissões dos poderes públicos que provoquem “vulneração massiva e contínua de direitos fundamentais”, hipóteses em que suas “sentencias” e “autos” se estendem a toda a população afetada e não somente às partes proponentes, mediante fixação de políticas públicas definidas com a participação da sociedade civil em audiências públicas realizadas com tal finalidade. É questão diversa da simples participação de “amici curiae” ou de imaginar que o julgamento, pela Corte Constitucional, encerra o processo e decide, de forma final, o conflito posto em questão perante o Judiciário. Antes, pelo contrário, constituem, como define Bartolomé Clavero, “práticas judiciais de democracia deliberativa”. São exemplares, nesse sentido, as discussões envolvendo o direito à saúde e também o “desplazamento forzoso” das comunidades indígenas e negras, questões muito bem documentadas por César Rodriguez Garavito e pouco divulgadas no âmbito brasileiro. Poderia, de forma muito consequente, ser utilizada para as comunidades guaranis do Brasil- e não somente as do Mato Grosso do Sul- em que situações de servidão, trabalho forçado ou “indecente” e mesmo de “instigação ao suicídio coletivo”, por manifesta omissão dos Poderes Públicos, constituem evidente “vulneração massiva e contínua de direitos fundamentais”.
Segundo: como já demonstrou Garavito, não se trata de simples ativismo judicial, mas sim de processo eminentemente dialógico, em que a decisão inicial de reconhecimento da inconstitucionalidade vai sendo aperfeiçoada, modificada e mesmo revisada em seus parâmetros a partir das intervenções das referidas audiências. Tal situação foi desenvolvida já nos primórdios da Constituição colombiana, mas nada impede seja utilizada e perfectibilizada nos países vizinhos: Bolívia, com o mandato constitucional de “descolonização” para alcançar uma “plurinacionalidade”; Equador, com o mandamento transversal de “interculturalidade” e, no caso do Brasil, com o pluralismo de ideias, a redução de desigualdades e o compromisso com os direitos humanos.
Terceiro, a reformulação do princípio da igualdade. O STF, durante muito tempo, como bem analisa Roger Raupp Rios, foi condescendente diante de “realidades discriminatórias e desoneração argumentativa perante tratamentos díspares”, tendo, nos últimos tempos, alterado posicionamento no sentido de “maior rigor em face de diferenciações e a emergência do conteúdo antidiscriminatório do princípio da igualdade”. Aqui, também, a Colômbia poderia ajudar: há mais de dez anos, tendo em vista a análise de direitos coletivos dos povos indígenas, a Corte vem entendendo que “sob o princípio da igualdade e na perspectiva de proteger a diversidade étnica e cultural do país é necessário, guardando simetrias legais, projetar simetricamente a outros grupos étnicos normas que garantam direitos coletivos para os povos indígenas”(Sentencia C-370/2002). E, neste sentido, estendeu-se, também com base na Convenção 169-OIT, o tratamento para as populações raizales e palenqueras daquele país e, hoje, as comunidades ciganas vêm peticionando junto à Corte o estabelecimento de uma política de habitação diferenciada, que a legislação nacional reconhece apenas para indígenas e comunidades negras. Da mesma forma, a situação da confissão religiosa ou da orientação sexual mais favorecida poderia ser considerada como “patamar normal de referência” e, portanto, qualquer desvio “de tratamento das minorias, em relação à maioria, é concebido a priori como restrição ao direito de igualdade” (Jónatas Machado). Trata-se, pois, de estender a todos os outros grupos um direito que já se encontra concretizado, à falta de fundamento racional ou material que determine tratamento diferenciado: extensão, por igualdade, do regime mais favorável já disciplinado (Jayme Weingartner Neto). O STF, por exemplo, poderia ter trilhado esta argumentação no julgamento da união de pessoas do mesmo sexo, sem que, para isso, tivesse que discutir a existência de “mutação constitucional” ou “literalidade” da norma.
Do que se trata, pois, é de, inicialmente, conhecer a jurisprudência e doutrina dos países com realidades culturais e sociais próximas da nossa. E, com isso, como destaca Rodrigo Uprimny, desenvolver: a) uma teoria da justiça constitucional “que implique um exercício da proteção judicial dos direitos tendente a promover e não a debilitar a participação e a discussão democráticas”; b) um pensamento constitucional progressista, “comprometido com o aprofundamento democrático da região, que, em diálogo com experiências e tradições de outras regiões do mundo, acompanhe, criticamente, os processos constitucionais latino-americanos em curso, afim de reduzir riscos autocráticos e fortalecer as potencialidades democráticas desses esforços de experimentação institucional”. Enfim, incentivar um caráter descolonizador, experimental e pluriverso de constitucionalismo e de práticas constitucionais.
César Augusto Baldi é mestre em Direito (ULBRA/RS) e doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha).
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