Relegados a segundo plano pelas ciências sociais brasileiras, os estudos pós-coloniais/descoloniais ganham impulso com distintos debates em universidades – como no IV Seminário Internacional do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, que abordou, entre outros temas, a questão da “colonialidade”.
Maurício Hashizume
Equipa ALICE
30 Aug 2013
Encontros e manifestações ocorridas em diferentes espaços da academia trouxeram à tona no Brasil a relevância da discussão em torno da “colonialidade” – noção consagrada pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano que, grosso modo, salienta a profundidade e continuidade de classificações sociais e relações hierárquicas de poder conformadas pela experiência colonial para além da dominação formal do colonialismo político.
Como parte do IV Seminário do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), organizou-se, na última terça-feira (27), a mesa “Colonialidade e emancipação do saber e do poder no contexto latino-americano”, com as participações da professora Rita Laura Segato, da Universidade de Brasília (UnB), do professor Ramón Grosfoguel (Universidade de Califórnia-Berkeley, EUA) e a professora Patrícia Scarponetti (Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina).

Mesa sobre colonialidade no IV Seminário do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar (Foto: Maurício Hashizume)
Para a professora Rita, o conjunto de pensamentos sobre a colonialidade não é fechado, mas composto de diversas perspectivas, de modo coletivo e “vivo”. Dois são os caminhos que associam a trajetória acadêmica-política que ela vem seguindo com essa miríade de perspectivas: o do feminismo e a da luta pela aprovação das cotas raciais no ensino superior – da qual ela foi uma das expoentes. A partir da compreensão de que a raça é signo (marca móvel e maleável da posição dos corpos na história “lida” por um “leitor” informado) e não um fator biológico, Rita expôs suas concordâncias e discordâncias com a concepção de colonialidade apresentada por Quijano. Uma das questões-chave, segundo a professora, está, portanto, em diferenciar as diferentes noções de nomeação de raça: diferentemente do que ocorre no Caribe ou nos EUA, o racismo, nas ex-colônias ibéricas do continente americano, tende a se impor como diferença ao mesmo tempo em que nega a sua própria existência. Em consonância com a abordagem pós-colonial/descolonial, a acadêmica argentina radicada no Brasil reforça a diferença e as peculiaridades dos contextos sociais na América Latina.
Inspirado na teoria da dependência e em diversas outras influências, Quijano, segundo Rita, teve o mérito de “digerir” a ideia de colonialidade, que condensa a “historicidade plena” e reforça a “centralidade” da noção de raça. Nesse sentido, a conquista da América – e o surgimento de uma série de categorias fundamentais (índios/brancos, América/Europa etc.) para “narrar o imaginário do presente” e valorizar o “novo” em detrimento do “velho”, dando bases cruciais à crença no progresso linear e do crescimento infinito para o futuro – se apresenta como crucial para a modernidade. “Ainda que seja uma invenção colonial, a raça se reinventa a cada dia”, adverte a professora da UnB. No entendimento dela, essa linha de pensamento expõe formas imbricadas de exploração de classe e raça, colocando em xeque o marxismo mais ortodoxo que se concentra fortemente nas relações de produção entre burguesia e proletariado. No bojo da prevalência do eurocentrismo, o racismo não se dá apenas com relação aos corpos “racializados”, mas na produção (saberes, conhecimentos etc.) desses mesmos corpos. “Teorias do Norte ´chovem´ no Sul. Foi estabelecida uma divisão social da produção do conhecimento que restringe quem não é do Norte a apenas aplicar essas mesmas teorias”, critica, realçando a colonialidade do saber.
Ao chamar atenção para a “inteligência histórica de preservação” demonstrada pelos povos indígenas da América Latina (como os tupinambás, no Brasil) que resistem como coletivo há séculos e à importância de assumir um certo ´pensamento de tertúlia´ (em que conversar e trocar ideias coletivamente é mais importante do que escrever), Rita estabelece diálogo com as “epistemologias do Sul”, a “ecologia de saberes” e a “tradução intercultural” – conceitos-chave do Projeto ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas.
Modernidade/Colonialidade
No mesmo debate, Ramón Grosfoguel – que inclusive participou de seminários avançados do mesmo Projeto ALICE – optou por tentar fazer uma diferenciação entre o pensamento pós-colonial e o descolonial. Começou por sublinhar que não o célebre grupo de acadêmicos do qual faz parte em torno do Modernidade/Colonialidade consiste, na realidade, em uma rede, com muitas diferenças entre si. A impressão de que se trata de um coletivo mais coeso provavelmente está associada, de acordo com ele, a um artigo de um outro membro (o antropólogo colombiano Arturo Escobar), mas não se dá na prática.
O pensamento descolonial, seguiu Ramón, diferencia-se justamente pelo reconhecimento de uma larga história de enfrentamento aos cânones político-ideológicos coloniais. “Antes de Quijano, já havia perspectivas descoloniais. E depois também. E elas são muitas e plurais”, frisou aos presentes ao Auditório Bento Prado Jr. Em adição, o professor criticou a ideia de pensamento descolonial “fundante”, pois muita gente “a partir de diferentes epistemologias e cosmogonias” tem formulado sobre essa questão desde o século XVI.
Já a pós-colonialidade é, para Ramón, mais recente e mais focada na crítica à historiografia colonial, especialmente no que diz respeito à dominação britânica. Segundo ele, enquanto a crítica descolonial se dedica a interpretar a modernidade e colonialidade como “duas faces da mesma moeda” criadas ao mesmo tempo com a chegada dos europeus na América em 1492, a crítica pós-colonial – que tem na sua genealogia interpretações focadas em experiências coloniais (na Ásia, e particularmente na Índia, e no Oriente Médio) a partir do século XVIII – pode apresentar esses dois fenômenos (modernidade e colonialidade) como distintas. A diferença de fundo, sustenta o acadêmico porto-riquenho, está na compreensão descolonial de que não há maneira de “salvar” a modernidade, isto é, de convertê-la em projeto de libertação e emancipação dos povos oprimidos. Daí que, na interpretação dele, o pós-colonialismo possa ser lido, em alguma medida, como “colonialismo do saber” pelo viés da esquerda, dada a prevalência dispensada a cinco pensadores do Norte (Marx, Gramsci, Derrida, Lacan e Foucault) e o desinteresse pela diversidade epistêmica que vêm se dedicando, nas mais distintas condições, a enfrentar outros colonialismos que não o britânico.
Entre as diversas questões colocadas pelo público – a pedido da professora Patrícia Scarponetti, que optou por se manifestar a partir das indagações das pessoas presentes -, emergiu o risco de reificação da raça (apontado por Frantz Fanon), que porventura poderia subtrair o seu potencial emancipador. Ramón lembrou que ofensivas anti-essencialistas baseadas na superioridade da razão científica guardam um ranço colonial e que, no processo de desconstrução de paradigmas estabelecidos e de reconstrução de epistemologias próprias, as escolhas com relação às formas de representação no campo étnico-cultural-racial cabe a cada movimento e coletivo em suas próprias lutas. Rita pontuou ainda que o racismo e a matriz racializadora estão profundamente vinculadas a contextos específicos e que identidades fundamentalistas “culturalizadas” não podem “matar” a diversidade de sujeitos sociais latino-americanos.

Sessão sobre "Relações Étnicas e Raciais" no Grupo de Trabalho (GT1) – Culturas, Identidades e Diferenças (Foto: Maurício Hashizume)
Relações Étnicas e Raciais
Além da mesa, o tema da colonialidade também esteve presente nas discussões da primeira sessão (Relações Étnicas e Raciais) do Grupo de Trabalho 1 (Culturas, Identidades e Diferenças), que teve o professor Valter Roberto Silvério (UFSCar) como debatedor. Foram apresentados diversos trabalhos que – a partir de abordagens, métodos e estudos específicos – trataram alguma forma da relação entre as lutas contra a discriminação racial na América Latina (especialmente no Brasil) e os contextos sociopolíticos na qual estão inseridas.
Um dos nós da discussão foi o tema da constituição do “ethos” nacional brasileiro, a partir da análise histórica e crítica das posições assumidas por três setores-chave: a intelectualidade/academia, o Estado e os movimentos sociais. As lacunas na política de reconhecimento das diferenças étnico-raciais, a incorporação institucional de um discurso multiculturalista contemplativo que não desestabiliza as relações de poder e os conflitos para a adoção de ações afirmativas no sentido de enfrentamento do racismo foram avaliadas a partir dos mais variados autores, com atuação dentro e fora do Brasil. Na opinião de Ramon Grosfoguel, que acompanhou parte dos debates, os trabalhos revelam uma necessidade de captar de forma mais precisa a intersecção entre a opressão de raça e de classe social sem cair em falácias construídas a partir dos quadros teóricos idealizados e pretensamente universalistas do Norte.
Curiosamente, não houve destaque a um outro encontro acadêmico profundamente ligado ao mesmo debate que será realizado na mesma UFSCar na semana que vem. Trata-se do I Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI), entre 2 a 6 de setembro, que foi concebido e organizado pelos próprios estudantes indígenas da UFSCar e deve reunir, pela primeira vez na história, mais de 300 estudantes de graduação e pós-graduação de 45 povos.
Para além da crise?
Outro importante evento que pôs em evidência o tema da colonialidade foi o IV Encontro da Cátedra América Latina e Colonialidade do Poder: Para além da crise? Horizontes desde uma perspectiva descolonial, que teve início na última quarta (28) e se encerra nesta sexta (30) no campus Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Resultado de uma articulação entre professoras/es, pesquisadoras/es da UFRJ, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o encontro trouxe ao país pensadores relevantes como o próprio Aníbal Quijano (membro da Cátedra América Latina e professor da Universidade Ricardo Palma, no Peru) e Catherine Walsh (professora principal e diretora do doutorado em Estudos Culturais Latino-americanos na Universidade Andina Simón Bolívar, no Equador), que também faz parte da rede Modernidade/Colonialidade.
Organizado na forma de três paineís – “Estado e poder”, “Capitalismo e desenvolvimento” e “Experiências emancipatórias”, o encontro assumiu o intento, conforme a organização responsável, de “aprofundar um pensamento crítico que foge das limitações de uma interpretação economicista das estruturas capitalistas”. Estiveram ainda presentes como conferencistas: Luis Tapia (filósofo e doutor em Ciências Políticas, diretor do doutorado multidisciplinar em Ciência do Desenvolvimento da Universidad Mayor de San Andrés-UMSA e da Universidade Nacional Autônoma do México-UNAM), Agustin Lao-Montes (sociólogo da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos), Edgardo Lander – sociólogo venezuelano da Universidade Central da Venezuela; Alberto Acosta (economista equatoriano, professor e investigador da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais-FLACSO, no Equador) e Ana Ester Ceceña (economista e investigadora do Instituto de Investigações Econômicas da UNAM.
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