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Europeus de uma outra cor: Por que são portugueses os goeses

O presente artigo surge em resposta ao comentário de Sir Andrew Green sobre o alegado uso indevido da cidadania portuguesa por parte de cidadãos indianos de origem goesa, que, segundo os jornais Daily Star e Daily Mail, apenas imigram para a Grã-Bretanha por razões oportunistas. O ponto de vista expresso por Green há meses atrás reflete as opiniões xenófobas dominantes a propósito dos direitos dos imigrantes que demandam a Europa; é, por isso, de esperar que o contraponto que aqui ora se oferece possa contrariar tal preconceito, que seguramente não deixará de continuar a manifestar-se.

Autores: R. Benedito Ferrão e Jason Keith Fernandes.

Versão do artigo em inglês: Kafila / 31 de agosto de 2013.

Vista de Goa em 1509, in Braun e Hogenberg, 1600. Imagem: Wikimedia Commons.

Em 13 de maio de 2013 a eternet goesa fervia de indignação com as declarações de Sir Andrew Green, presidente do Migration Watch, publicadas no Daily Star e no Daily Mail. O Daily Star escrevia: “Qualquer indiano originário de Goa pode obter a cidadania portuguesa se os pais tiverem sido cidadãos portugueses anteriormente a 1961”. O jornal citava ainda Green, que teria afirmado: “Nesse caso, podem, sem mais, vir com a família viver para a Grã-Bretanha. À chegada, podem logo recorrer a todos os benefícios à disposição dos cidadãos do Reino Unido”. Acicatado talvez pela afirmação de Green, o Daily Mail acrescentava: “crê-se que um número de cidadãos indianos originários do antigo território português de Goa se aproveitou de uma lacuna existente na lei. Os indianos que vivem em Goa podem reivindicar a respetiva origem portuguesa e, com ela, a cidadania portuguesa também. Podem, deste modo, ir viver para a Grã-Bretanha – diretamente, sem nunca sequer terem de visitar Portugal – e levar consigo a família, sem prestarem qualquer teste de qualificação”.

Dada a forma como a questão do acesso dos goeses à cidadania portuguesa vem sendo tratada na imprensa britânica, acreditamos, na nossa qualidade de académicos que se dedicam ao estudo de Goa e da comunidade goesa, que se torna necessário corrigir esta visão deturpada e denunciar com firmeza não apenas esta amnésia deliberada quanto ao passado imperial da Grã-Bretanha, mas também a interpretação anglocêntrica do colonialismo e da ordem mundial pós-colonial e des-colonizada em que tais distorções se baseiam. Ao fazê-lo, é nosso objetivo não só vincar a necessidade de os goeses e outros grupos do antigo Estado português da Índia afirmarem a legitimidade dos seus atos, mas também dar azo a uma visão da ordem mundial a partir de uma posição de maior respeito para com os antigos colonizados.

Para se poder abordar o referido preconceito, bem anglocêntrico, relativo ao contexto colonial e pós-colonial, há, primeiro, que voltar a olhar para aquilo que foi o encontro da Europa Ocidental com o Sul da Ásia. O confronto remonta aos finais do século XV, com a “descoberta” portuguesa do caminho marítimo para as fabulosas Indias. Dele resultou a criação, no ano de 1510, daquilo que viria a chamar-se o Estado Português da Índia, com o centro em Goa. As fronteiras da Índia portuguesa, que além de Goa abrangia outros enclaves, só foram solidamente fixadas no século XVIII, por entre uma contestação não apenas local mas vinda também de outras potências europeias. Uma consequência desta penetração precoce no Sul da Ásia foi que, aquando do abandono do subcontinente pelos ingleses, com a entrega do poder a dois Estados-nação – A Índia e o Paquistão –, o Estado português da Índia iria ainda sobreviver aos seus pares britânicos, acabando por perfazer cerca de 450 anos de vida. Esse Estado português foi marcadamente diferente daquele que os ingleses haviam criado durante a sua permanência no subcontinente. Especialmente significativo, no que se refere às deturpações que procuramos corrigir, foi a circunstância de o Estado português, ao longo da sua presença no subcontinente, ter sempre procurado reconhecer a população nativa como sendo constituída por cidadãos, portadores de direitos iguais aos das pessoas da metrópole.

Em conseqüência desse facto, Goa teve representantes parlamentares não-brancos a partir de 1834, altura em que o estabelecimento da monarquia constitucional abriu espaço, em Portugal, para um parlamento nacional. Em 1910, com a implantação da Primeira República, estes direitos passaram a ter aplicação universal, tendo apenas sofrido um certo apagamento durante o Estado Novo, a ditadura encabeçada por António de Oliveira Salazar. Porém a retórica da igualdade enraizou-se profundamente e a ela se referiam constantemente os luso-indianos, quer fossem residentes de Goa ou migrantes na Índia Britânica ou, inclusivamente, na África Oriental Britânica, onde muitos goeses viviam e trabalhavam munidos da sua cidadania portuguesa. Neste quadro colonial as diferenças raciais e culturais eram, efetivamente, ultrapassáveis, ainda que apenas no plano da teoria jurídica.

Tal situação era, seguramente, diversa daquela que se verificava não só na Índia como no resto do Império Britânico, onde o único estatuto de que desfrutava a população nativa era o de súbditos da Coroa. Poderá, por conseguinte, argumentar-se que se deve ao facto de o Estado Britânico não ter alargado às elites compradoras indianas o muito cobiçado estatuto de cidadão do império a circunstância de os membros deste setor terem, a dada altura, passado a reivindicar a independência relativamente à Coroa. As reivindicações nacionalistas postas em marcha por essas elites assentavam na criação de uma cultura nacional que aceitava, entre outras, as diferenças raciais impostas pelo sistema colonial britânico. Tal situação fez com que, em vez de ser postas em causa, as diferenças existentes acabassem por se perpetuar.

O Estado português da Índia chegou ao seu termo por força da ação empreendida pelo Estado Indiano em 1961, ano em que as forças armadas deste país invadiram o território português de Goa. Não obstante existir na região, ao tempo, um movimento anticolonial, não se pode dizer que a descolonização que acabaria por se dar em Goa tenha resultado, em grande medida, de movimentos anti-imperialistas autóctones, tendo em vista a intervenção militar do Estado Indiano e a posterior recusa do direito à autodeterminação para a população goesa. Acresce que, num gesto imperialista com reflexos nas ações exercidas por esta nação acabada de chegar à independência sobre a Caxemira e o nordeste do país, a antiga Índia Britânica procedeu à anexação unilateral do território de Goa. E se logrou fazê-lo, foi só porque a ordem pós-colonial que então se desenhava estava crivada de perspetivas racistas e etnocêntricas, em grande medida geradas pelas práticas coloniais britânicas. Estas, por sua vez, baseavam-se no pressuposto de que a contiguidade espacial e a presença – ainda que não exclusiva ou desprovida de diversidade – da religião hindu em toda a extensão geográfica do território conferiam à Índia pleno direito a apropriar-se de territórios marginais como eram os de Goa e Caxemira.

A significativa circunstância de, juridicamente, os goeses serem cidadãos portugueses não mereceu acolhimento, desvanecendo-se em face de uma lei do parlamento da Índia através da qual lhes foi concedida a cidadania indiana. Turvada por uma leitura efetivamente xenófoba do que é a indianidade e pela relação com os países vizinhos, a Índia, contrariamente a muitos outros regimes jurídicos, não permite que os seus cidadãos possuam nacionalidade múltipla. Com isso, os goeses e outros luso-indianos, ao invés do que sucedeu com os anglo-indianos, quando foram integrados no Estado Indiano perderam a cidadania portuguesa e, assim, a faculdade de serem, simultaneamente, sul-asiáticos e europeus, sendo-lhes imposta como cidadania única a indiana.

Só após a normalização das relações entre a Índia e Portugal é que alguns ex-cidadãos do Estado português da Índia conseguiram reaver a cidadania portuguesa. É precisamente por causa das infundadas alegações do Daily Mail que se deve sublinhar que estes luso-indianos não estão agora, nem a requerer uma nova cidadania, nem a explorar um buraco da lei. O que, de facto, estão a fazer é reivindicar um direito legítimo que foi perdido por efeito da ação do Estado Indiano. Não têm nada que provar o seu ser português, como o Daily Mail sugere, porque os pais eram portugueses – se é que eles próprios o não são –, e os 450 anos em que Goa foi parte de Portugal tornaram estes goeses tão portugueses como qualquer outro indivíduo do continente europeu detentor de cidadania portuguesa. O argumento do Daily Mail é profundamente ofensivo, porquanto parte do pressuposto racista de que, para se ser português e europeu, é preciso ser caucasiano. E tal pressuposto, como é evidente, decorre, por sua vez, do facto de as práticas coloniais de Estados como a Grã-Bretanha considerarem que, em rigor, é preciso ser branco para se ser britânico ou europeu.

É bem controverso o historial da Inglaterra, enquanto nação, no que diz respeito a saber quem é considerado britânico. Tenha-se presente que durante as décadas de 1960 e 1970, no rescaldo da descolonização da África Oriental e das políticas de africanização, num clima de grande empobrecimento devido à colonização, se assistiu ao vilipêndio e à expulsão dos asiáticos, a quem foi, seguidamente, negada a entrada no Reino Unido, não obstante serem, enquanto súbditos provenientes das colónias, titulares de passaporte britânico. Quando, em 1972, 50.000 asiáticos foram expulsos de Uganda por Idi Amin, ficou provado que a própria Commonwealth não passava de uma palavra vã, visto que já em 1968 o direito a entrar no Reino Unido por parte dos titulares de passaporte britânico do período colonial havia sido retirado em reação ao aumento da imigração de motivação económica provinda do Quénia em 1967. É importante, neste ponto, salientar que, se havia asiáticos – incluindo goeses – nos países da África Oriental, era não só porque a administração britânica dessas colónias os havia recrutado, mas também porque o Império tinha beneficiado com o seu trabalho. Em muitas situações foi concedida a goeses a cidadania britânica para que pudessem prestar serviço na administração colonial. Mas mesmo sendo esses goeses, formalmente, britânicos, a verdade é que os seus passaportes do Reino Unido lhes servia mais como documentos de viagem do que como garantia dos seus direitos de cidadania, como dolorosamente se veio a verificar no período pós-colonial. Não obstante os goeses e outros grupos colonizados terem sido, outrora, considerados “suficientemente” britânicos para servir o regime, tornou-se evidente que deixaram de o ser a partir do momento em que perderam a utilidade. Tratou-se de uma enorme fuga à responsabilidade nacional e legal, inclusivamente tendo em conta o clima político de sensibilidade racial gerado por anos e anos de poder colonial britânico em África. Com efeito, o legado colonial continua ainda hoje a manifestar-se, como se pôde ver pela revelação, feita este ano, da destruição dos registos respeitantes às atrocidades cometidas contra os Mau Mau, o grupo queniano que se rebelou contra o domínio britânico.

Apesar de todos os problemas gerados pelo colonialismo português, incluindo o inerente racismo, o que é de sublinhar é que ele também se diferenciou pela retórica jurídica que reconhecia, e continua a reconhecer, como sendo também portugueses os diversos grupos existentes fora de Portugal. Deste modo, os luso-indianos que recuperam a cidadania portuguesa e depois migram, não apenas para a Grã-Bretanha, mas para qualquer outro lugar do mundo, desenham um percurso que é, afinal, semelhante ao de outros portugueses que presentemente fogem de um Portugal arrasado pela crise europeia. As interpretações do mundo – geralmente anglocêntricas – tendem muitas vezes a ignorar a história jurídica e os fluxos de migração dos portugueses. Reconhecer o contexto lusitano é viabilizar uma reconstrução da europeidade fora dos enquadramentos racistas que presentemente a confinam. É permitir que se corrijam os moldes racistas em foi construído o mundo pós-colonial, com as suas restrições à livre movimentação internacional das pessoas. Se, por um lado, os privilégios dos brancos perduram na facilidade de viajar que hoje é garantida a alguns, o concomitante racismo conduz a protestos como aqueles de que dão notícia o Daily Star e o Daily Mail, bem como à rotineira humilhação de viajantes não-brancos nas embaixadas, consulados e postos de controlo de imigrantes um pouco por todo o mundo. Ao pôr-se em causa o racismo subjacente à declaração atribuída a Sir Andrew Green, está-se também a oferecer à Europa a oportunidade de questionar o racismo em que o projeto europeu assenta; e ao apelar-se a uma re-leitura dos fluxos de capital e de populações que contribuíram para a presente hegemonia europeia, está-se a fazer com que a atual crise possa ser utilizada como meio de repensar a União Europeia na sua ligação com o mundo que existe para além dela e enquanto produto da sua própria história.

 

Tradução de João Paulo Moreira

R. BENEDITO FERRÃO é investigador universitário, com trabalho na área dos estudos pós-coloniais e das diásporas. Foi docente universitário nos Estados Unidos e na Índia, e tem contributos em diversas publicações internacionais. Pode ainda ser lido no seu blog thenightchild.blogspot.com, ou no Facebook em The Nightchild Nexus.

JASON KEITH FERNANDES doutorou-se recentemente em Antropologia pelo ISCTE – IUL, com uma tese intitulada “Experiências de Cidadania dos Católicos de Goa”. Para além dos interesses académicos, intervém regularmente na esfera pública através de colunas de opinião publicadas em The Gomantak Times, O Heraldo, e The Goan, e reunidas em ww.dervishnotes.blogspot.com.

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