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“A sociedade deve exigir às autoridades que não paguem dívidas ilícitas”

Boaventura de Sousa Santos em exclusivo ao SAVANA. Para o Catedrático português, dívidas odiosas devem ser consideradas pessoais de quem as contraiu e não do Estado.

Savana
Armando Nhantumbo
29 Jul 2016

"Ou aqueles que se querem enriquecer à custa da corrupção são travados ou então haverá um empobrecimento irreversível do país" (Foto: Ilec Vilanculos)

O seu percurso académico faz dele uma pessoa respeitada em todo o mundo. Boaventura de Sousa Santos, uma referência obrigatória em faculdades de ciências sociais, diz que hoje é quase um consenso internacional que as dívidas ilícitas, nas condições de Moçambique, não devem ser pagas pelo Estado porque, caso contrário, podem transformar o país num Estado falhado, devido ao duro impacto que pode causar. Contra o que chama de chantagem do capital financeiro internacional, de Sousa Santos, um dos mais influentes pensadores dos nossos tempos, entende que, ao contrário do que se pode pensar, o capitalismo é flexível, desde que veja que há forças que o confrontam e, no caso de Moçambique, aponta os recursos naturais e a agro-indústria como a contra-partida do país perante eventuais sanções internacionais derivadas do não pagamento das dívidas. O sociólogo dá o exemplo da Argentina que durante 14 anos esteve vedada aos mercados internacionais pelo não pagamento de dívidas, para sustentar que, por vezes, os países aguentam situações de desobediência, desde que saibam negociar todas as vantagens e activos que têm. Sobre a paz, o autor de um vasto acervo bibliográfico é peremptório em afirmar que, se a Frelimo não estiver preparada para uma descentralização intensa, é bom que se prepare porque não há outra alternativa para a paz que não seja a partilha do poder. Entrevistámo-lo, em Maputo, semana finda, para onde veio “dar aulas” sobre “a Difícil Democracia: Estado, Cidadania e Desenvolvimento em Tempos de Capitalismo Financeiro” e “Estado Social e Inclusão”, num ciclo de palestras baptizado por “Noites de Sociologia”.

Durante muitos anos, Moçambique foi visto como um exemplo no mundo, em termos de convivência pacífica no pós-conflito, mas também mercê daquilo que, hoje, os economistas como João Mosca e António Francisco chamam por “delírio financeiro”, ou seja, um crescimento económico acima da média, situado aos 7 por cento/ano, um crescimento notável do Investimento Directo Estrangeiro e a indústria dos Recursos Naturais. Hoje, qual é a imagem que se tem de Moçambique em Portugal?
É um pouco a opinião internacional de que Moçambique é um país que atravessa dificuldades que têm muito a ver com um endividamento grave, nomeadamente, as chamadas dívidas ilícitas ou ocultas. Estas dívidas, inclusivamente, dão um sinal de problemas graves de sustentabilidade e de organização política, por permitir que coisas tão graves quanto estas dívidas tenham sido feitas sem o conhecimento dos cidadãos, nem das instituições políticas, o que é um sinal duma corrupção dentro das estruturas políticas do próprio Governo que também vai afectar a credibilidade internacional do país.

Em 2012, escreveu um artigo intitulado “Moçambique: a maldição da abundância?” para se referir aos riscos que correm os países pobres onde se descobrem os recursos naturais objecto de cobiça internacional. Três anos depois, que respostas encontra para as interrogações que levantava no artigo? São interrogações que incluem crescimento do PIB em vez de desenvolvimento social; corrupção generalizada da classe política; aumento em vez de redução da pobreza; polarização crescente entre uma pequena minoria super-rica e uma imensa maioria de indigentes; destruição ambiental e sacrifícios incontáveis às populações onde se encontram os recursos em nome de um “progresso” que estas nunca conhecerão e, finalmente, criação de uma cultura consumista que é praticada apenas por uma pequena minoria urbana, mas imposta como ideologia a toda a sociedade.
Eu costumo dizer que os sociólogos são bons a prever o passado, não a prever o futuro, mas neste caso, acertei no meu prognóstico. Muitos dos riscos que previ que podiam existir aqui em Moçambique, se confirmaram. Estamos a assistir, por exemplo, ao aumento das desigualdades sociais, os sinais de corrupção no Governo e, portanto, dá-me a impressão que muitas dessas previsões que configuram a tal maldição holandesa se realizaram e rapidamente.

Sente que há corrupção generalizada em Moçambique?
Comecei a trabalhar e a fazer estudos em Moçambique nos anos 90 e o que se nota é que o fenómeno da corrupção parece ser endémico nesta fase do capitalismo financeiro. Enquanto o capitalismo produtivo precisa de trabalhadores, de relações sociais de produção, tem de reconhecer os direitos dos trabalhadores, precisa de paz social que hoje, normalmente, exige um sistema democrático; por seu turno, o capitalismo financeiro assenta na produção de dinheiro e na circulação do capital e não precisa da democracia. Quanto mais rápida for a circulação maior é a rentabilidade. O capital pode ser obtido à custa, por exemplo, da bancarrota de um país ou da corrupção dos decisores políticos, desde que garanta os níveis de uma rápida rentabilidade. Este sistema está a generalizar-se e Moçambique talvez não seja excepção.

No artigo de 2012 criticava ainda o que denominou por saque das riquezas moçambicanas por grandes multinacionais como a australiana Rio Tinto e a brasileira Vale. Sente que prevalece o risco de, no final do ciclo da orgia dos recursos, o país estar mais pobre do que no seu início?
Sim, vejo esse risco, aliás, as notícias que tenho indicam que, por exemplo, nas negociações que estão em curso neste momento, as empresas (como a Anadarko ou a ENI) têm vindo a exigir condições cada vez mais gravosas…

Até exigem territórios…
E, portanto, as concessões já não são apenas para a extracção, mas são concessões de territórios, o que quer dizer que Moçambique está a ser posto na condição de ter de ceder a sua soberania, de tal maneira que amanhã, se quiser construir uma estrada ou um hotel, terá de pedir autorização às empresas que são titulares dessas concessões. Isto é um sinal de que as empresas viram que Moçambique está numa situação de debilidade e, como tal, agravam as condições e até atrasam os investimentos até que as condições estejam tão benéficas para elas. O que está em curso é, exactamente, o saque desses recursos e, no fim, Moçambique pode estar mais empobrecido até por uma razão que não alertei nesse artigo e hoje tenho muito mais consciência dela: é que a exploração de gás e minérios e da agricultura industrial, no caso do Prosavana, vai exigir destruir muita riqueza, isto é, não é apenas a riqueza que vai ser extraída e levada para o exterior com muito pouca retenção de benefícios por parte dos moçambicanos, é que vai obrigar a expulsão dos camponeses que tinham terra como a grande herança. Moçambique corre o risco de perder o que tem e obter, em troca, águas contaminadas, empobrecimento das terras, populações expulsas das suas terras, aumento das doenças nas camadas camponesas que vivem junto dos grandes projectos mineiros ou da agricultura industrial (porque no caso da agricultura industrial são usados os chamados agro tóxicos, que são normalmente aplicados por via aérea). Para além disso, estão a se usar mecanismos como a titulação da terra de camponeses (através do DUAT) que só na aparência é para dar segurança ao seu título de propriedade: porém esta titulação da terra visa, fundamentalmente, transformar o título em algo transacionável para que amanhã os camponeses vendam as suas terras a troco de muito pouco a grandes empresas que vão realizar a concentração de terras e a expulsão de camponeses. E os camponeses depois vão ficar apenas como operários dentro dessas empresas que operam nessas terras que eram originalmente suas. Esse processo devia ser parado quanto antes e a grande tarefa da sociedade civil seria de um alerta, porque esta é a grande condição da democracia económica que ainda existe em Moçambique; é a democracia da terra, ela está a decair, a deteriorar-se e com ela está-se a deteriorar também a democracia política.

Iminente Estado falhado
Se percebemos bem, disse, em “Noites de Sociologia”, em Maputo, que as dívidas ilícitas de Moçambique configuram um sinal de um Estado falhado. Ou quer nos corrigir?
Não, Estados falhados são aqueles cuja ineficiência é tal que, eles têm, de alguma maneira, de ser administrados por agências externas. Eu não disse, de maneira alguma, que Moçambique é um Estado falhado, o que eu digo é que suspeito que há forças internacionais que estão interessadas em que Moçambique venha a ser um Estado falhado porque Estado falhado é um Estado que está de joelhos, que está à mercê da voragem, da exploração e do saque das suas riquezas, um Estado que se rende porque não tem condições para defender os seus interesses ou porque está muito endividado e, portanto, está na mão dos credores que podem impor as condições que quiserem. Realmente, o único sinal de que algo como Estado falhado pode estar na forja é o caso das dívidas ilícitas e ocultas porque pelo seu montante e pelo impacto que podem ter, se Moçambique decidir pagar essas dívidas, vão pôr Moçambique numa situação de extrema debilidade, de extrema dificuldade. Moçambique ficará à mercê de programas de austeridade que vão, obviamente, levar à redução das políticas públicas, na educação, na saúde, nos transportes e, obviamente, a privatização de recurso e da terra que avançará ainda a um ritmo muito maior. Portanto, o que digo é que há sinais preocupantes de que esta situação possa vir a configurar uma situação de Estado falhado. É apenas um risco que está aí e ele, normalmente, se define por níveis de corrupção demasiado altos, em situações a que as instituições não são capazes de pôr termo.

O professor defende sempre que não há Estados, naturalmente, falhados, eles são feitos falhados. Reparando para o caso moçambicano, esses sinais a que se refere, são exclusivamente ligados a forças internacionais, ou identifica também elementos internos?
Em geral, estas situações são produto de uma conjunção de forças externas e internas.

E quais seriam as forças internas moçambicanas?
São aquelas que controlam o Estado e os recursos e, através desse controlo, podem cair naquilo que nós chamamos de uma acumulação primitiva do capital, que é uma acumulação ilegal e violenta e o envolvimento de gente que tem poder político em Moçambique, nestas dívidas ilícitas, configura uma situação de acumulação primitiva de capital. Obviamente criam-se grandes fortunas e muitos bilionários, mas a grande maioria dos moçambicanos empobrece, num país em que grandes empresas continuam a ter incentivos fiscais que no meu entender são imorais, neste momento.

A propósito de bilionários, no passado alertou a existência de conflitos entre os interesses do país governado pelo presidente Guebuza e os interesses das empresas do empresário Guebuza. Quando olha para trás, acha que o presidente Armando Guebuza soube gerir esses conflitos?
Não tenho suficiente informação para responder a essa pergunta. Se as instituições democráticas e, nomeadamente, as judiciais, funcionarem neste país, e espero que sim, o combate contra a corrupção poderá esclarecer se essa suspeita se confirmou ou não. É para isso que há uma investigação criminal que, se for bem conduzida, sem poupar as elites politicamente protegidas e for uma investigação ampla e profunda, ela certamente vai esclarecer essa situação.

Teoricamente, esses conflitos de interesse podem ou não serem associados à actual situação económica do país
É bem possível. São três empresas que estão a ser as protagonistas do endividamento ilícito e há uma ampla rede de membros da elite política deste país que está envolvida nesse endividamento ilícito. São essas as pessoas que têm de ser investigadas por corrupção. Aliás, as dívidas ilícitas ou odiosas nas condições actuais, e tenho defendido isso na Europa e na América Latina, não devem ser pagas, apesar de terem sido feitas com o aval do Estado, porque elas agravam, tremendamente, o endividamento do Estado sem qualquer objectivo politicamente legitimado. Os investimentos, nalguns casos, nem sequer foram efectivamente feitos; o que é preciso é, eventualmente, expropriar os bens daqueles que contraíram, ilegalmente, esses empréstimos e devolver o dinheiro a quem o emprestou.

Há quem diz que se não forem pagas, podem sair caras ao país que fica com uma imagem pintada a negro nos mercados internacionais. Até porque as agências de notação financeira não param de baixar o nosso nível no rating mundial que agora ultrapassa a categoria de “lixo”.
Essa é a grande chantagem que faz o capital financeiro internacional e, infelizmente, vejo colegas meus que muito estimo aqui em Moçambique a aceitarem essa lógica. O mesmo sucede nos países da Europa do Sul. É evidente que o capitalismo financeiro vem sempre com ideia de que qualquer atitude de desobediência que defenda os interesses que não são os dos credores deverá ser exemplarmente punida. E é essa ameaça, essa chantagem, e quanto mais frágil o Estado, mais eficaz é a chantagem. Eu não creio nisso. O capitalismo, ao contrário do que se pode pensar, é flexível, desde que veja que há forças que o confrontam e aqui, mesmo não se pagando essas dívidas ocultas, há um campo imenso onde o capital internacional pode gerar lucro, nomeadamente, na exploração de recursos naturais e da agro-indústria.

Está a dizer que Moçambique está em condições para dar volta a essa chantagem internacional?
Moçambique está em condições e os cidadãos precisam de se mobilizar nesse sentido. Esta é uma das situações em que não se pode de maneira alguma deixar que as elites políticas negoceiem sozinhas, porque as consequências são muito duras para a maioria da população. O Estado amanhã pode não ter dinheiro para os salários; já se anunciam medidas de austeridade, cortes na educação, na saúde, num país que já estava a construir essas infra-estruturas muito lentamente. A sociedade deve, pacificamente, organizar-se, mas organizar-se com muita força e muita dureza, para exigir às autoridades que não paguem dívidas ilícitas.

Mas se não paga, significa que o país tem de caminhar com seus próprios pés…
O caso do Equador é um dos mais interessantes de uma auditoria que fez para que parte da dívida não fosse paga. A Grécia também fez uma auditoria à dívida e estamos ainda num processo de reestruturação dessa dívida. As dívidas ilícitas são dívidas odiosas, frequentemente contraídas de modo oculto, por pura especulação ou usando conhecimento privilegiado de modos que objectivamente prejudicam os interesses nacionais. Hoje é quase um consenso internacional que tais dívidas não devem ser pagas. Devem ser consideradas dívidas pessoais de quem as contraiu e não dívidas do Estado. Claro que haverá um período em que o país tem alguma conturbação, mas Moçambique tem uma boa contrapartida, tem os recursos naturais que pode pôr na mesa de negociação, isto é, há muita vantagem para as grandes empresas que vai decorrer dos recursos naturais. A Argentina esteve entre 2001 e 2015 numa situação de não acesso aos mercados internacionais porque não pagou a dívida toda (não pagou aos fundos abutre, uma designação argentina) e, no entanto, o período até 2015 foi o do maior bem-estar para a população da Argentina. Cometeram-se erros, internamente, e o Governo perdeu as eleições do ano passado. E imediatamente a seguir às eleições, quando o novo Governo veio reconhecer toda a dívida que o país tinha contraído, os níveis de endividamento aumentaram exponencialmente, a pobreza aumentou e os cortes na educação e na saúde começaram. Portanto, os países por vezes aguentam situações de uma certa desobediência, desde que saibam negociar bem todas as vantagens e todos os activos que têm. Assim, a pressão da sociedade, que deve ser organizada, pacífica, mas muito intensa, inclusivamente com protestos pacíficos, na rua e noutros lugares onde se entender que deve ser feita a pressão sobre o Governo, deve ser no sentido do não pagamento de dívidas ilícitas e ocultas de Moçambique, um país onde a esmagadora maioria da população sofre de enormes carências. Esse é um trabalho que tem de ser complementado com um exercício muito exigente do sistema judicial, da investigação criminal, no sentido de averiguar responsabilidades e a grande dúvida aí é que infelizmente a prática recente de Moçambique leva-nos a ver que, normalmente, estas investigações nunca atingem quem está [incompleto].

A paz passa por partilhar o poder

Certamente que tem acompanhado o desenrolar do conflito político-armado em Moçambique. Onde é que acha que o país descarrilou do percurso que, como dissemos no início, era visto como um exemplo de convivência pacífica no pós-guerra?
Houve muitos erros cometidos e Moçambique está a pagar por isso. Em primeiro lugar, quando se faz uma transição para a democracia pluripartidária, essa transição tem de ser levada a sério e levar a sério significa que as eleições têm de ser livres, justas e não pode haver fraude eleitoral.

Em Moçambique essa transição não foi levada a sério?
Em primeiro lugar, defendo que os moçambicanos é que têm de responder, mas há um debate a esse respeito. Há os que pensam que elas foram livres e justas, há outros que pensam que houve fraude eleitoral. Em segundo lugar, para que essa transição tivesse êxito, era muito importante que a lógica do partido-Estado fosse definitivamente eliminada e não foi. Continua a haver, em Moçambique, muitos resquícios da cultura de partido único. Aliás, estes resquícios podem atingir o maior partido da oposição quando tiver poder. Se tal fosse o caso, em vez de termos uma democracia pluripartidária poderíamos ter uma democracia de dois partidos únicos. Para cargos dirigentes, o mérito não é a única condição para se ter êxito numa carreira, é preciso lealdade partidária. Ora, essa lógica vai minar todas as possibilidades de uma paz duradoura porque pessoas que vêm dos partidos da oposição podem ter mérito, mas não têm nunca essa lealdade. Em terceiro lugar, era preciso uma descentralização muito intensa porque o país é, extremamente, diverso etno-culturalmente. As rivalidades e diferenças entre as regiões do país não foram tratadas, adequadamente, e hoje vêm ao de cima.

Se pudesse estar com o presidente da República e com o presidente da Renamo, que conselho é que daria aos dois, tendo em conta a sua bagagem académica e a experiência que tem em negociações para a paz, até porque neste momento está a negociar a paz na Colômbia?
Dir-lhes-ia que a vossa situação não é nem de longe comparável a outras que nós temos vivido no mundo como a da guerra civil na Colômbia que dura há cinquenta anos. Dir-lhes-ia que façam duas coisas: primeiro, parem os tiros e deixem de matar gente e, em segundo lugar, tomem medidas concretas para que os camponeses de Lichinga possam fazer chegar os seus produtos a Maputo. Que ponham fim aos tiros e sigam aquilo que disseram quando o presidente Nyusi foi eleito e chamou “irmão” ao presidente Dhlakama e “vamos resolver os problemas”. Então resolvam. Não há assim tanta coisa a resolver. Como digo, é uma descentralização intensa em que, realmente, em certas províncias onde a Renamo tem tido vitórias eleitorais, isso seja directamente contabilizado num processo de paz. É preciso partilhar poder em Moçambique.

Há quem defenda que uma descentralização nos moldes em que o professor coloca seria uma espécie de quebra de hegemonia da Frelimo. Acha que um partido libertador como a Frelimo está preparado para uma descentralização de facto e não cosmética?
Se não está, tem de se preparar porque não há outra alternativa que não seja essa. Trata-se de uma descentralização intensa que não obstrua, obviamente, a unidade de Estado, e que, pelo contrário, aprofunde a unidade do Estado. Se a Frelimo não está preparada, é bom que se prepare porque, no futuro, não acredito que a paz seja possível senão houver um processo de descentralização genuíno, intenso e que permita a uma parte da população de Moçambique ver que quando vota nalguns dirigentes para os governar, eles vão mesmo governar. Até agora algumas regiões do país têm vindo a votar para que outras pessoas os governem e isso não tem acontecido.

Como é que a democracia, as liberdades fundamentais, os direitos humanos ou a dignidade humana como o Professor prefere, enfim, todos os valores de um Estado de Direito Democrático, que aliás fazem parte do objecto de estudo do Professor, sobrevivem perante a guerra, o controlo político-ideológico, o cerceamento do pensar diferente, a subida do custo de vida, que marcam o Moçambique de hoje?
Não sobrevivem. Não podemos ter direitos humanos e democracia se todos esses sintomas se agravarem. Um deles causa-me particular preocupação: é a criminalização do protesto social, a intimidação da dissidência que limita a vitalidade do conhecimento livre e crítico, que impede as Universidades de produzirem, doa a quem doer, conhecimento que contribua para o bem-estar do país, para que os cidadãos possam tomar decisões informadas no plano político e no plano social. Se esses sintomas persistirem, a democracia de Moçambique vai sendo encolhida, vai perdendo vitalidade, vai se esvaziando e amanhã podemos estar numa situação em que já não sabemos muito bem se estamos em democracia ou se estamos numa outra coisa. Não gostaria que Moçambique caísse nessa situação porque amo muito Moçambique, gosto muito de Moçambique, está no meu coração há muitos anos. Há mais de 20 anos que venho para aqui, então, não queria que isso acontecesse, mas estou a ver que isso pode vir a acontecer se não forem tomadas medidas a curtíssimo prazo.

Há três anos, dizia que a legitimidade revolucionária da Frelimo sobrepunha-se cada vez mais a sua legitimidade democrática, com o agravante de estar a ser usada para fins bem pouco revolucionários. Pode-se explicar?
É exactamente a lógica do partido-Estado que surge num contexto revolucionário de libertação, no qual havia proibição total de os dirigentes públicos se enriquecerem à custa do Estado. O que aconteceu é que depois da transição para a democracia pró-capitalista, para a democracia burguesa, a partir dos anos 90, manteve-se a lógica do partido-Estado e desapareceu a lógica revolucionária e essa lógica de partido-Estado, já desprovida do impulso revolucionário, se transformou numa arma de acumulação primitiva do Estado e de corrupção.

E a que se referia quando disse que, mesmo dentro da Frelimo, a discussão política é vista como distração ante os benefícios indiscutidos e indiscutíveis do “desenvolvimento”?
Quando formulei dessa forma, há três anos, estávamos em pleno triunfalismo de que Moçambique é a grande potência da África, rica em reservas de gás que vai resolver os seus problemas e a ideia era que não vamos fazer as nossas discussões internas, as nossas diferenças porque o que nós temos de fazer é aproveitar todas estas riquezas, enriquecer o país e melhorar o nível de vida dos cidadãos. Era um período de “por mais que nós comamos, vai haver muita fartura para todos”; mas hoje, com a desaceleração da China, com a alteração nos mercados internacionais e a descida dos preços do petróleo, do gás natural e de minérios, estamos numa situação mais problemática. Se alguns comerem por corrupção, não vai haver fartura para todos, vai haver é empobrecimento e, de duas, uma: ou aqueles que se querem enriquecer à custa deste processo são travados judicial, política e criminalmente e os recursos são postos ao serviço do país ou então vamos ter a maldição da abundância com um empobrecimento irreversível do país.

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