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Para entender el sentido que tiene la noción de “economía de la abundancia” es necesario aproximarnos primero al concepto de escasez y al lugar que ocupa en el pensamiento(...)
Jesús Sanz Abad

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Desmercadorizar

Luciane Lucas dos Santos
Publicado em 2019-04-01

A lógica da mercadoria tem se disseminado por diferentes domínios da vida e se adaptado aos novos interesses do sistema do capital, cujo foco nunca deixou de ser a realização plena de seu processo de acumulação. Neste sentido, temos presenciado não só uma redução propositada do tempo de vida útil dos bens, através da obsolescência programada e da promoção do consumo como palavra de ordem, mas também uma progressiva depreciação do valor de uso das mercadorias para resguardar a valorização do capital através do valor de troca (Mészáros, 2009).

 

No campo do consumo, o fetiche da mercadoria, cujo brilho encobre a exploração do trabalhador, não se constituiu como único modo de produzir e legitimar assimetrias. Entendido como eixo central na construção das identidades e assente na distinção social pela via do gosto (Bourdieu, 1984), o consumo como discurso e prática tem contribuído para a naturalização de hierarquias sociais múltiplas - não só de classe, mas também de género, étnico-raciais e de identidade sexual.

 

O conceito de monocultura da naturalização das diferenças, proposto por Boaventura de Sousa Santos (2006), tem-nos permitido compreender como diferenças sócio-culturais são transformadas em hierarquias, com base numa suposta inferioridade produzida como ‘natural’. Se, entretanto, estas hierarquias são naturalizadas no imaginário social a partir das instituições, o consumo, como locus de afirmação da distinção social, tem se revelado como lugar privilegiado de cristalização destas hierarquias. Isto se dá, por exemplo, na genderização, racialização e heteronormatização dos sentidos sociais que circulam nos bens, e se dá, também, no apagamento das pegadas eurocêntricas subjacentes à estruturação da sensibilidade e do juízo estético em países periféricos. Neste sentido, o modelo global e dominante de circulação de bens não só se estrutura em torno da perpetuação de linhas abissais (Santos, 2007) - com fluxos de matérias-primas e de trabalhadores comunicando assimetrias - como também constitui mecanismos simbólicos e materiais de colonialismo interno (Santos, 2007). Alinhavando tudo isto está uma narrativa supostamente neutra e universal de desenvolvimento que fundamenta critérios de pobreza e riqueza comprometidos com uma permanente atualização das assimetrias sociais.

 

Neste panorama, tudo se torna mercadoria e passa a ser regido segundo sua lógica. Como resultado,  defrontamo-nos com a mercantilização da vida, dos espaços públicos das cidades e da natureza - esta última reduzida à condição de recurso e dilapidada por grandes projetos de mineração, energia e agronegócio no mundo inteiro. Do mesmo modo, no âmbito dos centros urbanos, formas de arquitetura hostil se disseminam, numa proposta explícita de restringir o acesso àqueles que não se encaixam no projeto de cidade-mercado. Como consequência, processos de gentrificação relacionados à transformação da cidade em mercadoria aprofundam aquilo que Santos (2007) denominou de fascismo do apartheid social.

 

Desmercadorizar, neste contexto, implica, antes de mais, modificar processos através dos quais a sociedade de mercado se consolida como tal. Um dos primeiros elos a ser desfeito se refere à lógica perversa de depreciação do valor de uso das mercadorias com vista à valorização do capital - numa clara separação entre sua reprodução e o atendimento às necessidades das pessoas. O segundo diz respeito à urgência de se desatrelar o consumo, como prática identitária, da lógica de distinção social de que se reveste. Desmercadorizar, aqui, significa reconhecer a existência e o valor de outras lógicas de pertença e de identidade - contemporâneas e rivais ao consumo capitalista - que não se constituem como formas de classificação social. Significa, ainda, o reconhecimento de formas não-capitalistas de consumo e de troca económica, em que outros códigos estéticos, semânticas do gosto e modos de construir redes de apoio e sociabilidade sejam factíveis - na contramão da distinção social que hoje caracteriza a circulação de bens e signos.

 

Para desmercadorizar, é preciso também desfazer a ideia da natureza como recurso - o que implica desmontar a armadilha epistemológica da quantificação económica dos ‘serviços ecossistémicos’. Requer ir além, reconhecendo a existência de outras cosmovisões, igualmente legítimas e contemporâneas, em que natureza e cultura não se separam. Por fim, e não menos importante, desmercadorizar significa desmontar a narrativa moderno-ocidental de desenvolvimento como único ponto de partida possível para construir a dignidade humana. Este exercício começa com o reconhecimento das perspectivas (neo)coloniais que cercam a construção dos critérios de pobreza e riqueza e em torno dos quais o mito do desenvolvimento se forjou.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Bourdieu, Pierre (1984), Distiction: a social critique of the judgement of Taste. London: Routledge.

Mészáros, István (2009), A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo.

Santos, Boaventura de Sousa (2006), A Gramática do Tempo: para uma Nova Cultura Política. Porto: Edições Afrontamento.

Santos, Boaventura de Sousa (2007), “Para além do pensamento abissal”, Revista Crítica de Ciências Sociais, Vol. 78: 3-46.

 


Luciane Lucas dos Santos é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, co-coordenando o núcleo de investigação em Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe). Entre seus principais temas de investigação estão: Economia Feminista, Estética Feminista e estudos pós-coloniais da Economia.

 

 

Como citar

Lucas dos Santos, Luciane (2019), "Desmercadorizar", Dicionário Alice. Consultado a 31.03.23, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24250. ISBN: 978-989-8847-08-9