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Media

Sofia José Santos
Publicado em 2019-04-01

Pensar a noção de media a partir das Epistemologias do Sul transporta-nos para duas reflexões distintas estando uma e outra invariavelmente relacionadas: uma conceptual, ligada ao que se inclui e exclui quando se define media, e uma outra processual, ligada à sustentação de processos hegemónicos e contra-hegemónicos. Mediando geografias, agendas, agencies e experiências que poucos/as poderão conhecer em primeira mão, os media detêm a capacidade de representar, nos seus próprios termos, a realidade, definindo simultaneamente os elementos e os limites dos debates públicos e, subsequentemente, da ação e da deliberação políticas. O poder de mediar e representar faz com que os media se assumam como um palco central na disputa de narrativas, consubstanciando-se numa esfera de poder e contra-poder. Assim, o que se qualifica como media valida determinadas vozes, experiências e conhecimentos em detrimento de outros. O que se veicula nos media como “realidade” valida agendas e horizontes políticos específicos, invisibilizando ou secundarizando tantos outros. No centro das duas questões está o papel da tecnologia que assume concomitantemente a função de “linha abissal” e de instrumento de criação de espaço político reivindicativo para comunidades e agendas invisibilizadas.

 

Tradicionalmente, o conceito de media sintetiza os processos e sistemas de comunicação operacionalizada a partir de um emissor e dirigida a uma audiência coletiva onde a especificidade de cada recetor se encontra diluída na massa agregadora que o público cria. Considerados individualmente e/ou como um todo, os media veiculam informação, entretenimento, propaganda e/ou publicidade, sendo tipicamente categorizados pelo suporte que usam (e.g imprensa escrita, media online, etc.), a natureza da mensagem (e.g. informativa), o tipo de propriedade (e.g. estatal, privada) e/ou o alcance/exposição da mensagem relativamente à sua audiência (e.g. comunitária, de massas) ou mesmo o tipo de audiência (e.g. ideológica, idade). Ainda que tenha sido apenas na década de 1920 e no Norte Global que se começou a falar de ‘media’ enquanto tal, a preocupação com esta realidade discursiva, a etimologia da palavra, bem como os processos comunicativos e discursivos que o conceito pretende sintetizar são muito anteriores, remontando mesmo à criação de pinturas rupestres e  outros mecanismos pictográficos e orais de transmissão de uma mensagem a uma audiência não individualizada. Do mesmo modo, registos deste tipo de processos podem ser encontrados em várias geografias e cronologias. Apesar da sua ideia e prática universais e plurais, a evolução do entendimento dominante de media tem sido desenhada enquanto consentânea com a da modernidade ocidental e a sua meta-narrativa de progresso. Atribui, por isso, centralidade à tecnologia que é entendida numa perspetiva darwinista (em que o menos sofisticado sucumbe perante a permanentemente recriada tecnologia de ponta) e alinhada com a ciência moderna. Neste contexto, a tecnologia funciona enquanto filtro principal de inclusão e de exclusão do que se qualifica como media. Porém, há muitos outros espaços e gramáticas da comunicação pública não tecnológica que têm um alcance abrangente e que influenciam vastos grupos de população, particularmente no Sul Global. Os livros de cordel em muitos países da América Latina e a figura dos/as Griot na África Ocidental são apenas alguns exemplos que mostram como o conceito de media no mundo excede a abordagem tecnológica dominante e que a tradição da oralidade supera, nestes casos, o predomínio da tecnologia. Ao não reconhecer a pluralidade da realidade dos media e das gramáticas de comunicação pública, a literatura dominante tem insistentemente hierarquizado os diferentes media (privilegiando os tecnológicos em detrimento dos não-tecnológicos que apelida de indígenas ou tradicionais), quando não mesmo falaciosamente sobreposto os media assentes em tecnologia tendencialmente de ponta a outras gramáticas de comunicação pública, em vez de os identificar como uma entre muitas outras gramáticas. Do mesmo modo, distintas formas de hibridismo têm emergido, evidenciando dinâmicas de resistência criativa que se apropriam tanto da tecnologia de ponta como dos produtos de media importados.

 

Em termos processuais, até aos anos 2000s, as representações veiculadas pelos media convencionais dominantes sustentavam a ideologia hegemónica através do que Herman e Chomsky apelidaram de “manufacturing consent”. Por seu lado, media alternativos – sobretudo rádios piratas e/ou comunitárias – encetavam processos de transformação social emancipatória. No século XXI, a internet - e a tecnologia que possibilita o seu uso tendencialmente horizontal e democrático - vieram conferir um maior espaço e visibilidade a movimentos contra-hegemónicos. Neste contexto, é a tecnologia que permite a superação da “linha abissal”. Estes media online alternativos tomam a forma de páginas de redes sociais, blogs, websites, dando visibilidade e eco a diferentes saberes, vozes e mensagens contra-hegemónicas emancipatórias até então invisibilizadas. Da mesma forma, forças hegemónicas e/ou opressivas fazem uso da internet para fazer valer as suas narrativas. As representações mediáticas nunca acontecem no vazio, mas antes num espaço de poder já constituído e simultaneamente constitutivo, tornando os media – independentemente da sua modalidade – um palco de disputa de narrativas e de poder e contra-poder.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Ansu-Kyeremeh, K. (2005), Indigenous Communication in Africa: Concept, application and prospects. Accra: Ghana Universities Press.

Cohen, Matt e Glover, Jeffrey (2004), Colonial Mediascapes. Lincoln: University of Nebraska Press.

Kumar, Sangeet e Parameswaran, Radhika (2018), “Charting an Itinerary for Postcolonial Communication and Media Studies”, Journal of Communication, 68: 347-358.

 


Sofia José Santos é investigadora no CES, onde lidera como IP o projeto DeCodeM, financiado pela FCT. Tem desenvolvido investigação sobre media e intervencionismo, media e securitização, e internet e tecnopolítica. É doutorada em Política Internacional e Resolução de Conflitos pela Universidade de Coimbra.

 

 

Como citar

Santos, Sofia José (2019), "Media", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24319. ISBN: 978-989-8847-08-9