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Mercados

José Castro Caldas
Publicado em 2019-04-01

O mercado é um mercado ou o mercado é uma metáfora (Thompson, 1993)? Pode ser um mercado, isto é, uma instituição que enquadra a interação entre vendedores e compradores, ou mesmo um local em que essas interações ocorrem – uma bolsa de valores ou uma lota de peixe. Mas pode também ser uma idealização desse tipo de interações, uma abstração, uma metáfora.

 

Como idealização ou metáfora, os mercados ocupam posição central no discurso da Economia Política desde o Iluminismo, assim como no da disciplina académica hoje designada simplesmente de Economia. Como metáfora do discurso económico, “os mercados” são uma emanação da natureza, a expressão de uma propensão “natural” dos seres humanos para a troca.

 

Tal comos se encontram na obra de Adam Smith, por exemplo, os mercados são um atributo da “ordem natural”, de cuja expansão depende não só a riqueza das nações mas também o florescimento das virtudes. Na Economia neoclássica contemporânea são uma condição de eficiência na utilização dos recursos económicos.

 

A naturalização dos mercados tem como corolário na Economia Política clássica e na Economia neoclássica o princípio da não intervenção. Se os mercados decorrem da natureza e obedecem a “leis naturais”, qualquer interferência com o seu “livre” funcionamento tende a originar consequências indesejadas.

 

No entanto, a Economia Política clássica e a Economia contemporânea reconhecem limites do mercado – circunstâncias em que o mecanismo de mercado fracassa na provisão de bens e serviços, ou dá origem a “custos sociais” que poderiam ser evitados. Nessas circunstâncias a intervenção deliberada por parte dos poderes públicos seria justificada, mas apenas enquanto instrumento supletivo face a “falhas” inevitáveis.

 

O registo histórico e a investigação antropológica contradizem abertamente esta visão idealizada dos mercados. Tendo origens remotas, os mercados foram ao longo de milénios apenas uma entre várias instituições de aprovisionamento económico. Além disso, a expansão das relações mercantis nos séculos mais recentes, longe de ser produto de um processo de desenvolvimento espontâneo, envolveu um contínuo e violento intervencionismo do Estado. Na verdade, para que os mercados florescessem à escala das nações foi preciso estabelecer uma ordem jurídica uniforme em todo o espaço nacional, instituir pesos e medidas, abolir barreiras alfandegárias, remover entraves à mercantilização do trabalho e, para isso, desmantelar a economia camponesa de subsistência, enfraquecer as corporações de artífices, desarticular as relações feudais.

 

A investigação acerca de mercados concretos mostra, contra as visões idealizadas, que a ideia de um mercado como um mero palco de transferências voluntárias de bens e serviços determinadas por preferências individuais, dá fraca conta das interações mercantis realmente existentes. Na realidade, as trocas mercantis são melhor descritas como transferências de direitos de propriedade que ocorrem num quadro jurídico, e numa cultura específica.

 

A montante da troca mercantil está sempre: (a) uma definição do que é e não é um objeto apropriado de propriedade e de comércio (é ou não legítimo comprar e vender seres humanos? é ou não legítimo o comércio de dinheiro que conhecemos por crédito?); (b) uma definição de quem pode e não pode participar no mercado como vendedor ou comprador (quem pode vender serviços médicos? quem pode ensinar na Universidade?); (c) uma definição dos direitos e deveres inerentes à propriedade (o que posso construir no terreno que adquiri? O que posso e não posso exigir ao assalariado?). Todos estes direitos e obrigações são objeto de uma redefinição permanente em que participam diversas instâncias do Estado.

 

Nesta perspetiva, a ideia de “mercado livre”, de não intervenção do Estado, ou de intervenção meramente supletiva é desprovida de significado. O mercado depende sempre de instituições políticas. Mercado e Estado são instituições complementares. Tanto a “desregulação” como a expansão do mercado para novas esferas de provisão de bens e serviços, mesmo quando justificadas por uma ficção de não intervenção, envolvem uma intervenção laboriosa dos poderes públicos.

 

A visão despolitizada e axiologicamente neutra dos mercados que domina o atual discurso económico leigo e erudito, e a apologia dos mercados como sistemas de provisão superiores a todos os outros, decorre de uma ideologia. Os mercados concretos e o lugar que ocupam e que devem ou não ocupar nos sistemas de provisão dependem sempre de uma definição prévia de um enquadramento normativo e de escolhas que ocorrem na esfera das instituições políticas.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Anderson, Elisabeth (1990), “The Ethical Limitations of the Market”, Economics and Philosophy, n. 6. pp. 179-205.

Hirschmam, Abert O. (1982), “Rival Interpretations of Market Society: Civilizing, Destructive, Feeble?”, Journal of Economic Literature, Vol. XX, pp. 1463 – 1484.

Louçã, Francisco e Caldas, José Castro (2010), Economia(s), 2ª Edição, Capítulo 5, Porto: Afrontamento.

Thompson, E. P. (1993), “The Moral Economy Reviewed”, in Customs in Common – Studies in Traditional Popular Culture. New York: New Press, p. 273.

 

José Castro Caldas é doutorado em Economia pelo ISCTE-IUL. Atualmente é investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), onde integra o Observatório Sobre Crises e Alternativas, e do Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social (CoLABOR).

 

 

Como citar

Caldas, José Castro (2019), "Mercados", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24321. ISBN: 978-989-8847-08-9