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Maria Irene Ramalho

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Oriente

Rui Feijó
Publicado em 2019-04-01

Oriente é sinónimo de “levante”, de “leste” ou de “nascente”: um ponto cardeal, um conceito essencialmente relacional. Contudo, a capitalização da vogal inicial remete para uma realidade difusa, de contornos vagos e relativos, e carácter plural. Na verdade, são vários os “Orientes” de que se fala quando se utiliza este vocábulo, e nenhum mapa acolhe qualquer entidade com esse nome. O “Oriente” do “Orient Express” (que ligava Londres e Paris a Istambul) não é o mesmo do “Despotismo Oriental” que Wittfogel vislumbrava nas sociedades hidráulicas da Ásia. Expressões consagradas como Médio Oriente / Próximo Oriente - região que se estende das margens leste e sudeste do Mediterrâneo até ao Irão, Afeganistão e Paquistão, incluindo territórios africanos e asiáticos e culturas árabe, persa e turca - ou Extremo Oriente, designando o leste do continente asiático (incluindo a Rússia asiática, a China, o Japão e a Indonésia), evidenciam a elasticidade deste conceito. Dentro da Europa não é raro falar-se de Europa Oriental – conceito que descende por vias sinuosas da partição, ocorrida em 395, do Império Romano pelos filhos de Teodósio em duas unidades, uma das quais subsistiria até à queda de Constantinopla em 1453. Como a Sicília e a Península Ibérica estiveram sob dominação árabe, também elas podem ser vistas como tendo feito parte de um “Oriente”.


Se é tarefa impossível traçar uma fronteira ao conceito de “Oriente”, não há machado que corte a raíz ao pensamento, e a imaginação humana produziu diversas visões do que seria o carácter excepcional desse “mundo-outro” para grande parte dos europeus. Mas pensar a alteridade, mesmo que sustentada em observação empírica, acarreta perigos, nomeadamente a falácia etnocentrica. Foi precisamente para os perigos de abordagens correntes no mundo ocidental que Edward Said, prestigiado intelectual palestiniano, chamou a atenção no seu famoso libelo Orientalismo (1978), cujo subtítulo é “Representações ocidentais do Oriente”. Nele defende que o “orientalismo” corresponde a uma maneira, acobertada na noção de “conhecimento responsável”, de perpetuar estereótipos sobre uma parte importante do mundo – no seu caso, o Médio Oriente – que se articulava proximamente com o modo ocidental de “dominar, reestruturar e exercer o poder sobre o Oriente”. O exotismo da diferença que se sublinhava acabava por se constituir não como uma abordagem analítica da alteridade mas antes como justificação de intervenções destinadas a promover a “civilização” e a impor um modelo alheio.


Portugal teve e tem os seus “Orientes” – espaços físicos e mentais que combinam em doses variáveis a observação e a imaginação. O Primeiro Império português em Quinhentos teve por epicentro o Índico, e como âncora a cidade de Goa, “a Roma do Oriente”. Mesmo quando os complexos histórico-geográficos se alteraram (o Segundo Império em Setecentos haveria de ser brasileiro e o Terceiro, após a Conferência de Berlim, africano, e como tal mais meridionais que “orientais”), Portugal guarda uma imagem positiva desse período. Como diz António Manuel Hespanha, “o Oriente continua a ser, ainda, uma memória histórica dourada, o lugar por excelência [...] das excelências da nossa acção colonizadora”. Esse mesmo Oriente ressurgirá em força na literatura portuguesa na viragem de Oitocentos, quando Portugal adelgaçara as suas relações com essa parte do mundo, com Camilo Pessanha (em Macau) e Wenceslau de Moraes (no Japão), um movimento que não deixara imune Eça de Queirós (veja-se O Mandarim) ou António Feijó com o seu Cancioneiro Chinês.


Terminada a aventura colonial em 1975, o interesse pelo Oriente manter-se-ia vivo. A administração portuguesa continuou em Macau – a “ultima pérola do Império” - até 1999, garantindo-se um estatuto especial para essa região no contexto da República Popular da China. Por outro lado, foi com grande emoção que se viveram no país os actos finais do processo de auto-determinação de Timor-Leste que haveriam de desembocar na restauração da sua independência a 20 de Maio de 2002.


Nos anos finais do milénio, a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses organizou uma série de exposições sob o lema “Memórias do Oriente”, e deu à estampa Os Construtores do Oriente Português ou O Orientalismo em Portugal que contribuíram para uma reflexão academicamente sustentada sobre as relações entre Portugal e o “Oriente”. Surge também a Fundação Oriente, cuja missão comporta um continuado apoio ao estabelecimento de pontes entre Portugal e o Oriente (designadamente com a China, mas igualmente com a Índia e Timor, onde possui delegações), devendo realçar-se a abertura em Lisboa do Museu do Oriente inteiramente dedicado à divulgação entre nós de culturas orientais.


Finalmente, uma palavra para a presença em Portugal de importantes comunidades étnicas de origem chinesa e indiana (e em menor medida, de timorenses), que lograram transportar para o quotidiano dos portugueses aspectos das suas culturas de origem, estando hoje estabelecidas de forma cosmopolita relações de proximidade com elas (nomeadamente através da sua gastronomia). Poderemos ver nestas manifestações diversas uma espécie de “Orientalismo pós-imperial”, como sugerido por Hespanha.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Hespanha, António Manuel (1999), “O orientalismo em Portugal (séculos XVI-XX)”, in Portugal: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, O orientalismo em Portugal: séculos XVI-XX. Lisboa: CNCDP, 15-39.

Said, Edward (2004), Orientalismo. Representações Ocidentais do Oriente. Lisboa: Colibri.

 

Rui Graça Feijó é Investigador (ao abrigo da norma transitória do DL 57/2106/CP1341/CT0004) do CES e investigador associado do IHC/UNova Lisboa. Ao longo dos últimos 15 anos, tem dedicado a sua pesquisa a Timor-Leste, com especial interesse no processo de construção de uma democracia em contexto pós-colonial.

 

Como citar

Feijó, Rui (2019), "Oriente", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24468. ISBN: 978-989-8847-08-9