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Agua

Ana Paula Lemes de Souza
Publicado em 2024-03-23

A água, fonte primordial da vida, é um líquido vital que cobre aproximadamente 71% da superfície terrestre. A vida na Terra começou na água. Ela compõe todas as formas de vida, terrestres ou aquáticas, animais, vegetais ou microscópicas, representando, em si, o antiespecismo.


Além de ser a substância que compõe a maior parte dos organismos vivos, ela desempenha um papel essencial nos ecossistemas globais, influenciando o clima, a geologia e a biodiversidade, atuando como um agente ativo em diferentes processos e contribuindo para a resiliência ecológica. Em suas diferentes formas, as águas moldam, continuamente, as paisagens terrestres. O seu ciclo constitui um processo dinâmico que inclui evaporação, condensação, precipitação e outros fenômenos, mantendo o equilíbrio hídrico do planeta.

 

As interações de coletivos, humanos e não humanos, com as águas constituem fenômenos complexos. A relação entre oceanos, rios, lagos e atmosfera sustenta a vida e fornece os recursos necessários para a flora, fauna e, evidentemente, para os seres humanos. Além da relevância biológica, geológica e climática, a água possui uma dimensão cultural e histórica. Nesse sentido, a máxima romana "acquae condunt urbes" — "águas fundam cidades" — mantém sua relevância. O estabelecimento humano e a subsequente fundação de cidades dependiam essencialmente da presença da água, seja proveniente de rios, baías, geleiras, aquíferos, lagoas, fontes e assim por diante. Além do aspecto material, o simbolismo da água permeia diversas culturas e está presente em diversos mitos de criação, sendo associada à purificação, à renovação e à espiritualidade.


No Brasil, algumas comunidades são chamadas de "povos das águas" ressaltando a estreita dependência desse elemento, para além das necessidades biofísicas, adaptando os seus modos de vida à relação com que estabelecem com os corpos d’águas, constituindo relação de afeto e de ancestralidade. No circuito das águas da Mantiqueira, o aquífero é percebido como um ancestral de cura, estabelecendo uma relação marcada por afetos, narrativas, histórias e memórias com as fontes de águas carbogasosas. Essa perspectiva não é exclusiva dessa região e encontra eco em diversas comunidades ameríndias, que mantêm uma relação singular e profunda com as águas. Como nos conta Ailton Krenak, para os povos Krenak o rio Doce é um avô. Para esses coletivos, as águas não constituem uma entidade imanente, mas são sagradas enquanto fluem ou vertem em seus mananciais e leitos.

 

Diferentes usos e práticas ao longo do tempo inscreveram nas águas temporalidades distintas. Na contemporaneidade, a concepção de que a água é meramente um recurso como qualquer outro reflete uma epistemologia que trata os elementos não vivos como passíveis de expropriação. Nos termos da linguagem científica, as águas foram reduzidas a uma única molécula, H2O, desvinculada inclusive de seu aspecto sagrado e vivo. Suas manifestações objetivas, tais como mares, rios, lagos, chuvas, fontes, cachoeiras, neve, orvalho e até mesmo dos corpos dos seres vivos, passam a ser medidas e classificadas como meros objetos de análise e a própria água passa a ser suscetível de apropriação.


Apesar de ser considerada um recurso estratégico na lógica da economia liberal, no papel de insumo e de matéria-prima, a água transcende essa abordagem meramente utilitária. Seu impacto vai além das fronteiras da economia, já que ela é primordial para a ecologia planetária. É necessário transcender a visão puramente utilitária da água, considerando a sua importância integral para a mãe Terra e para as suas diversas manifestações de vida. Devem ser considerados, também, os modos de vida das coletividades humanas e não humanas em torno das fontes de água.


Na era do Antropoceno, Capitaloceno ou Plantationoceno — alguns dos termos utilizados para categorizar o período em que o impacto do estilo de vida capitalista e moderno se transforma em uma força geológica, impondo pressões contínuas e constrangimentos crescentes sobre a Terra — os recursos hídricos estão sob ameaça. São diversos fatores que impõem esses riscos, como o aumento populacional, a poluição e as mudanças climáticas.


Além disso, a tendência contemporânea de monetizar a natureza, característica do modo moderno de habitação terrestre, incentiva a exploração e privatização, intensificando ainda mais os desafios enfrentados pela água. Em um mundo onde as alterações climáticas e a exploração desenfreada ameaçam a sustentabilidade hídrica, é urgente pensar a água como uma entidade ativa, que participa da co-constituição da vida e da não vida, uma agência que molda ativamente a Terra.


Como Povinelli destaca, a separação convencional entre viventes e não viventes constitui uma ferramenta poderosa que molda estruturas sociais e institucionais, de modo a facilitar a expropriação de bens e insumos no liberalismo tardio, como a própria mineração da água. Hoje, se torna necessária uma reflexão ética sobre como interagimos e administramos esse componente vital do nosso planeta, desafiando nossas concepções fundamentais da relação entre a vida e a não vida, pois um aquífero pode ser considerado um existente — no sentido de que persiste no ser —, ao mesmo tempo em que serve de ambiência para outros seres.

 

Essa lógica holobionte, no sentido de Lynn Margulis, serve tanto para corpos humanos quanto para os corpos d’água, que podem constituir, ao mesmo tempo, singularidades existenciais e ambientes para outrem, embaçando a tradicional divisão entre viventes e não viventes. Afinal, um corpo d’água tem, para falar como Espinoza, um conatus, um agir próprio, ao mesmo tempo em que um affectus, capacidade de afetar e de ser afetado. A água carrega consigo histórias entrelaçadas de ecossistemas, coletivos humanos e não humanos e formas de vida diversas. Ela tece seu caminho através da geologia e da cultura, influenciando e sendo moldada pelas interações locais e globais entre diferentes atores.


Em um olhar desprovido de referências diretas, podemos contemplar a água em sua coreografia hidrológica, em constante movimento, tecida por interações complexas e vínculos entrelaçados. Essa tapeçaria aquática não é apenas uma fonte vital para a sobrevivência; é uma narrativa que se desdobra em paisagens, molda ecossistemas e influencia as trajetórias de diferentes seres ao longo do espaço e do tempo. Mais do que um elemento isolado, a água se torna uma presença dinâmica e passa a incorporar as narrativas ao seu redor.
Ao mergulhar nessas interações, pensando com a dança das águas, percebemos que elas não conhecem fronteiras rígidas. Ela transcende divisões, conectando ecossistemas, culturas e comunidades. A sua gestão ética não é apenas uma questão de sustentabilidade; é um convite a compreender as implicações mais amplas de nossas relações com esse líquido vital, que conjuga geosfera, biosfera, antroposfera e tecnosfera. Esses diferentes modos de ser com as águas repercutem nas experiências de diversos grupos em relação à Terra e aos recursos naturais. Tais práticas constituem não apenas uma distinção ontológica, mas geram impactos políticos tangíveis sobre a justiça ambiental.

 

São três as propostas para reinstituir uma temporalidade terrestre à água. A primeira se trata de reconhecê-la como um recurso vital para toda forma de vida. A segunda, tratá-la como um bem comum público mundial e um direito universal, o que assegura um compromisso com a preservação não apenas da humanidade, mas de todo o ecossistema terrestre, assegurando o equilíbrio ecológico. Em terceiro lugar, a atribuição de direitos à própria água se solidifica como um passo importante para a sua proteção e preservação, fundamentais para os viventes ou não viventes. A água, além de ser uma necessidade vital, é uma entidade merecedora de direitos próprios, demandando nossa responsabilidade coletiva na busca por um futuro sustentável e equitativo.
Assim se torna possível desafiar a monetização da natureza, que frequentemente resulta em exploração e privatização, estabelecendo uma base para uma gestão hídrica orientada por princípios de justiça ambiental.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:

BALLESTERO, Andrea. The Anthropology of Water. Annual Review of Anthropology, v. 48, p. 405-421, 2019a.
BALLESTERO, Andrea. A Future History of Water. Durham, NC: Duke University Press, 2019b.
KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
LEMES DE SOUZA, Ana Paula; VIANNA, Raphael; ALCÂNTARA, Valderí de Castro (Orgs.). Ecologia das Águas: o futuro em corrosão. Cambuquira: Nova Cambuquira, 2019.
LEMES DE SOUZA, Ana Paula et al. (Orgs.). Clamor das águas: a busca por nova identidade para as águas minerais no Brasil. 1. ed. Florianópolis/SC: CAXIF/UFSC, 2018.
MARGULIS, Lynn. Symbiosis everywhere. In, The symbiotic planet: a new look at evolution. Londres: Phoenix, 1999. 
POVINELLI, Elizabeth A. Geontologies: a requiem to late liberalism. Durham and London: Duke University Press, 2016.
 

Ana Paula Lemes de Souza é doutoranda em direito na Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. É pesquisadora, escritora, ensaísta e advogada. Bolsista de doutorado sanduíche do Programa Institucional de Internacionalização – CAPES – PrInt, com estágio doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra entre Janeiro e Junho de 2024.
 

Como citar

Souza, Ana Paula Lemes de (2019), "Agua", Dicionário Alice. Consultado a 27.04.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=45593. ISBN: 978-989-8847-08-9