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Abrindo caminhos à imaginação jurídica – Entrevista com Cesar Baldi

Cesar Baldi é formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalha há cerca de 25 anos no Judiciário e ministra aulas há dez anos, geralmente de introdução ao estudo do direito, mas também de direitos humanos e antropologia jurídica. Atualmente está vinculado a um programa de pós­-graduação de estudos de direitos humanos e dando aulas na graduação em uma universidade privada.

Red de Sociología Jurídica en América Latina y el Caribe*
8 Jan 2014

Considera que existem algumas particularidades que diferenciam a sociologia jurídica na América Latina e no Caribe?
Eu tenho tido mais contato com pessoal do Caribe por causa do Nelson Maldonado­-Torres e da CPA [Caribbean Philosophical Association]. Na realidade, com a gestão que se iniciou em novembro de 2013, com Jane Anna Gordon, eles devem fazer um movimento de comunicação com o Brasil e outros países da América Latina para construir pontes. Eles perceberam que não conhecem, por exemplo, praticamente nada do processo do Equador e da Bolívia e que têm pouco conhecimento das questões do Brasil. Eu acho que esse intercâmbio vai começar a se tornar mais visível, mas, de qualquer forma, a gente também poderia dar um passo no sentido inverso. Ou seja, nós do Brasil trabalhando com outros autores.

Por exemplo, eu citei, na palestra, a questão do Haiti, que temos traduzido, para o português, ‘Os jacobinos negros’ [autor: C.L.R James], mas a gente não conhece nada do mesmo autor. Temos ‘O capitalismo e escravidão’, do Eric Williams, mas não temos mais nenhum outro trabalho dele, um autor que é de Trinidad e Tobago. Selwynn Cudjoe fez uma compilação de vários escritos e discursos de Williams, que foi primeiro­-ministro daquele país. Então, existem trabalhos interessantíssimos do Lewis Gordon e Africana Studies, mas que não são muito conhecidos.

Mesmo que a gente trabalhe com Boaventura de Sousa Santos e a epistemologia do sul, ainda existe todo um pensamento caribenho que vem sendo ignorado. Por exemplo, Paaget Henry tem um libro sobre ‘Caliban’s Reason’. A Jane Gordon vai publicar um livro agora que se chama ‘Creolizing Rousseau’, analisando a questão da vontade geral a partir do olhar de Frantz Fanon; praticamente com isso a gente pode trabalhar algumas questões de soberania, de biopolítica e também renovar os estudos jurídicos e sócio­-jurídicos.

O Rabaka, no livro sobre apartheid epistêmico, trabalha o pensamento do Du Bois, negro americano praticamente ignorado como uns fundadores da disciplina da sociologia, a partir da ideia do Lewis Gordon da decadência disciplinária, mostrando muito bem que a gente acaba fossilizando as ciências sociais, fazendo com que elas apareçam como se fossem eternas, como se tivessem sempre os mesmos autores, os mesmos cânones e consequentemente como se elas não tivessem um passado, um presente e um futuro. Desta forma, elas acabam criando um processo de, como disse Rabaka, um apartheid epistêmico.

É a decadência disciplinária no vocabulário de Lewis Gordon; a própria disciplina não se renova, não procura novos temas e também não procura aprender com outros conhecimentos, nem ‘descanonizar’ determinados autores. Eu acho que temos um bom material para trabalhar algumas coisas do Caribe, pelo menos com estes autores. Lewis Gordon acabou de fazer uma intersecção com pessoas da África do Sul, trabalhando como professor convidado ‘Nelson Mandela’, trabalhando a questão do ‘ubuntu’, ou seja, a dignidade da pessoa humana na concepção africana. Ele, nesse sentido, está fazendo uma conexão com a questão do Caribe. Temos então portais muito interessantes que podemos ir abrindo e verificando, porque as pesquisas não são independentes de forma absoluta – cada qual pode ir pesquisando, alargando o conhecimento e trabalhando com outras coisas, trabalhando com a ideia da justiça cognitiva, com a ideia de que a gente tem outros conhecimentos e outras lógicas.

Faz sentido pensar e falar a partir da América Latina e do Caribe ou necessitamos fazer esses diálogos com outros espaços?
A questão da América Latina é um pouquinho complicada se pensarmos, por exemplo, que Suriname foi colônia holandesa até 1975 e que uma das Guianas ainda é francesa. Consequentemente, nós temos um processo de colonização dentro da própria América Latina. Ou melhor, um processo inconcluso de descolonização, mesmo com a declaração da ONU de 1960. Apesar da imagem geral que temos de que a América é ibérica, e que as colônias eram da Espanha e Portugal, temos pelo menos uma ex­-colônia holandesa e uma atual colônia francesa. Eu acho que aí já há uma tensão com essa ideia da latinidade.

O próprio Caribe é também um fenômeno complexo. Se paramos para pensar, há ainda países que são colônias: Aruba e Curação tem um estatuto complicado; Porto Rico é um Estado associado, mas pode vir a ser o quinquagésimo primeiro Estado norte­-americano – qualquer das condições é complicada; tem as Ilhas Virgens britânicas, as Ilhas Virgens americanas; Cuba foi colônia espanhola até 1898 (mesmo ano da independência das Filipinas, na Ásia); e outras ilhas foram colônias holandesas.

Nesse sentido, não se trata de procurar uma identidade, mas podemos estabelecer diálogos Sul­-Sul no sentido de trabalhar conhecimentos, lógicas e práticas que possam ser distintas. Por exemplo, pessoas do Caribe e de Cuba trabalhando com pessoas de origem afro do Brasil em outras lógicas; ou pessoas Garífonas, que na Nicarágua e Honduras não se reconhecem nem como indígenas nem como negros podem trabalhar outras questões que a gente invisibilize na discussão sobre os quilombolas. Talvez a necessidade de os movimentos sociais entrarem em contato uns com outros, fazendo alianças transacionais e, com isso, perceberem o que cada um reconhece nas suas lutas.

Da mesma forma, pra dar um exemplo bem típico, boa parte dos países da colonização ibérica trabalham muito com a questão do pluralismo jurídico indígena, mas praticamente não existem trabalhos que abordem o pluralismo afro. Qual o motivo da exclusão? E com relação a ciganos, por que a omissão também? Poderiam trabalhar como se organizam os litígios, como se estabelece um ordenamento jurídico - ou não ­-, qual é a relação entre a comunidade e a sociedade envolvente e, consequentemente, qual é o status de interlegalidade que a comunidade afro tem.

Há muitas questões com as quais poderíamos entrar em contato e conhecer dinâmicas que a gente não tem ideia que existem. Isso poderia enriquecer e dinamizar as questão de antropologia e sociologia jurídica. Há uma série de pontos que eu citei que não foram explorados e necessitam tematização.

Enfocando-nos mais no Direito, quais tipos de estudos devem ser fortalecidos na região?
Eu poderia pensar, assim de sopetão, em algumas questões, por exemplo, em termos de jurisprudência: os tribunais do Brasil conhecem muito da jurisprudência europeia e norte-americana, mas não conhecem nada da Colômbia, por exemplo. A Colômbia já decidiu questões envolvendo deslocamentos internos, ações afirmativas, já trabalhou questões de saúde, enfim, são problemas que nos afetam, que aparecem constantemente nos tribunais do Brasil e que não conhecemos. Construiu o conceito de “estado de coisas inconstitucional”, que poderia ressignificar a discussão sobre a intervenção federal, que acaba não sendo aplicada. Aprender com a jurisprudência dos vizinhos para repensar questões similares.

Ao mesmo tempo, poderíamos trabalhar com questões indígenas ou afro, a partir de decisões do Equador e da Bolívia. Nós temos pouquíssimos casos envolvendo a jurisdição indígena no Supremo Tribunal Federal (STF). Por outro lado, na corte colombiana há um referencial bem grande, em especial no tema da consulta prévia, livre e informada, mas também da autodeterminação, de limites estatais, de questões de conflitos entre “direitos humanos” e jurisdição indígena, temas de interculturalidade.

Não conhecemos também muito a jurisprudência da Corte Interamericana, que tem dois julgados sobre comunidades negras, Moiwana e Saramaka, e que têm servido para a luta quilombola aqui. No Brasil, não se trabalha esse tipo de jurisprudência internacional. Eles têm vários casos envolvendo indígenas e isso pode servir para outras questões de luta, de fortalecimento de alianças transnacionais. Poderíamos pensar como é que essa jurisprudência internacional interfere numa visão mais alargada dos direitos humanos, ou como é que esse tipo de conhecimento é produzido nessas cortes ou mesmo como é diferente do conhecimento produzido nas cortes brasileiras. Como podemos aprender com o conhecimento das outras cortes? Flavia Piovesan, recentemente, mostrou que a Corte Europeia de Direitos Humanos tem usado, para os países do Leste Europeu, a jurisprudência da Corte Interamericana sobre justiça de transição, um tema que o STF resiste em tratar.

Tudo isso somente no âmbito das cortes, mas existem outras questões, como o pluralismo afro ­- que não conhecemos também em quase nenhum país da América, exceto no Suriname, país que tem uma questão bem específica nesse sentido.

Temos dificuldade para trabalhar a questão da cultura mutável, pois trabalhamos com uma lógica na qual a cultura fica fossilizada, congelada, e com isso, temos que imaginar que os indígenas e determinadas comunidades ­- no caso do Brasil, os ribeirinhos, caiçaras ou da população de ciganos, que é bem grande e que fica invisibilizada, as demandas deles vão ser eternas, que não vão ser alteradas, que eles não reagem, não trazem novas demandas e não se apropriam seletivamente de alguns conhecimentos que são veiculados pela sociedade envolvente. Ou mesmo que as decisões de cortes acabam afetando a luta jurídica das populações tradicionais.

Por exemplo, Maria Teresa Sierra, do México, lá do CIESAS, mostra que as mulheres indígenas, muitas vezes, fazem opção: podem trabalhar determinadas questões dentro da justiça indígena, mas, por exemplo, elas vão ver que para vencer determinadas resistências culturais podem ter que pressionar o tribunal pra ver como é que a comunidade vai reagir, mesmo que elas não queiram que a justiça “oficial” dê a resposta. Elas querem que a comunidade reaja de forma diferente e talvez tenham que tomar tomar determinada decisão. Às vezes, isso é uma opção de “litígio estratégico”, pois se ela vai contra a comunidade na justiça ordinária, ela pode ser sujeita a questões de gênero ou de racismo pelo fato de não ser compreendida por outra cultura, ou não poder se expressar em sua própria língua, ou na sua própria especificidade. Então há, às vezes, alianças estratégicas das próprias indígenas de decidir pela justiça indígena ou pela justiça nacional ou transnacional ­- pela Corte Interamericana­-, e, ao mesmo tempo, verificar como isso se resolve isso em termos de comunidade.

Acho que tem uma série de coisas que a gente poderia abrir em relação ao Direito sobre esse ponto, estou tratando aqui somente em termos de tribunais. Poderíamos também trabalhar com questões práticas: por exemplo, tivemos agora no final de semana entre 1º e 4 de novembro de 2013, a oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), onde entraram em contato e trocas um grupo de quarenta e cinco pessoas, para saber quais eram as demandas, quais as diferenças e o que cada movimento aprendia com outro. A universidade também tem que começar a fazer isso, no sentido de parar de trabalhar com eventos críticos para os quais ninguém das comunidades é convidado.

Como disse minha querida Catherine Walsh, deixar de falar ‘sobre’ e começar a falar de, desde e com as comunidades e, consequentemente, não trabalhar mais com a distinção sujeito­-objeto e começar a trabalhar com a noção de intersubjetividade. Verificar como esses conhecimentos são retrabalhados.

Na questão dos direitos humanos, a gente continua trabalhando muito com os sujeitos de direito, mas talvez tivéssemos que ir além: trabalhar com o conceito de ‘sujeito de conhecimento’. O discurso do ‘sujeito de direito’ continua sendo, ainda, um ‘discurso imperial’, que coloca uma hierarquia. A concepção do sujeito de direito, dentro de um patamar estatal, às vezes estabelece uma relação de verticalidade, que não reconhece a demanda, o conhecimento ou mesmo a juridicidade daqueles movimentos. Consequentemente, imagina que não está aprendendo e sim, que está ensinando. O processo pedagógico entre os movimentos, a universidades e as instituições é um processo de horizontalidade, de trocas de conhecimento ou de interconhecimentos.

Então, as universidades jurídicas poderiam fazer esse movimento de “extensão ao contrário” (como diz Boaventura de Sousa Santos, no livro sobre a universidade do século XXI) – trazer para as mesas de debates também os movimentos sociais, ao invés de ficar imaginando que estão indo fazer “facilitação” e ensinando como os movimentos devem litigar.

As universidades tem que começar a aprender com determinadas coisas e, dentro de outras lógicas, e também que as comunidades vão falar ou não e com qual linguagem. Sempre imaginamos que vamos trabalhar com outras culturas sendo completamente diferentes, por exemplo o Islã ou a cultura indígena, e vimos, nessa experiência da UPMS no fim de semana, que estávamos todos falando português e dentro do mesmo país, mas que era preciso um exercício de tradução do conhecimento entre os próprios movimentos. Isso talvez tenhamos que desenvolver melhor, a questão das traduções dos movimentos, das práticas e dos conhecimentos. E trazer isso para a própria “universidade” se reinventar, agora talvez como ‘pluriversidade’.

Poderia contar-nos um pouco sobre a questão da imaginação jurídica?
Na realidade, a questão da imaginação jurídica, que enfoquei, em parte na minha fala, é um tema que não desenvolvi completamente. Mas há um livro clássico chamado ‘A imaginação sociológica’, do Wright Mills, e, com isso, fui trabalhando na questão do reinventar determinadas questões.

O pessoal da Geografia renovou bastante o conhecimento geográfico a partir dos mapas, trabalhando não só os mapas normais, mas também os mapas com representações, simbolismos e escalas; mostrando que as escalas vão mudando os fenômenos, que as representações vão alterando determinadas situações e que os simbolismos vão alterando os objetos, sujeitos e nosso conhecimento. O famoso mapa de Al Idrisi, com o sul virado para o norte, é apenas um dos famosos exemplos.

Com isso, a Geografia se renovou bastante e começou a trabalhar com outro enfoque na espacialidade, com a questão da negritude, de como as identidades são construídas localmente, como determinados movimentos LGBT estão concentrados em determinados lugares, porque escolheram determinados lugares e como é que a territorialidade foi retrabalhada. Em suma, a própria Geografia, trabalhando com a questão de mapas e da territorialidade, reinventou seu próprio objeto e conhecimento.

No entanto, o Direito tem tido uma dificuldade grande de repensar os próprios instrumentos. Ele continua trabalhando com a lei como se fosse só um papel. Poderíamos trabalhar a lei de outras formas, como um texto aberto, como interpretação, como conflito, como mapa, como desleitura, etc.

A questão dos direitos humanos é algo que a gente tem como tranquilo, mas não se percebem visões antagônicas sobre os mesmos direitos humanos, com linguagens diferentes. Isso necessita que se façam determinadas traduções.

Essa questão da imaginação jurídica tem a ver com essa possibilidade de ampliar esse conhecimento a partir da renovação de alguns métodos, perspectivas que não vem sendo usadas. Eu cito o exemplo da questão do sentido da visão. A gente poderia dar novos sentidos para os sentidos ­- e com isso ter novos sentidos para os diretos humanos, utilizando justamente a polissemia da palavra “sentido”: em significado do tato, visão, paladar, olfato e audição (os cinco “sentidos”) e no significado do sentido do “sentimento”.

Tem­-se trabalhado, ainda, numa lógica do direito muito positivista, como algo que é racional, mas não ligado à questão do sentimento. Quando trato desse tema em aulas, dou o exemplo do Corão, texto trabalhado por meio da lógica de recitação (Corão, como nos alerta Talal Asad, significa ‘recitação’). Isto é, um texto que é antigo vai sendo recitado todos os dias e, assim, vai adquirindo novos significados com novas interpretações que não passam, necessariamente, pela leitura, mas sim pela musicalidade e oralidade. Com isso, podem haver entendimentos totalmente diferentes de um texto escrito no século sete e que está sendo reelaborado pela reiteração. Consequentemente, um modo de produção pela oralidade trata de uma conexão muito diferente entre oralidade e escritura, além da questão da visão ­- porque o texto escrito é um texto visto, ele é recitado porque ele é visto,­- que produz diversos sentidos simultaneamente e novas organicidades.

Um outro exemplo que eu dou é o do Alain Corbin, por causa dos perfumes. Os perfumes femininos trabalharam muito com a questão da “animalidade” (odores de animais) até o século XVIII, como almíscar ou âmbar; a partir do século XIX, começou­-se a trabalhar com perfumes florais ­- como água de rosa, mais primaveril. O que parece ser somente uma mudança de cheiros é uma mudança também de concepção em relação à forma sexual: qual é o apelo sexual que as mulheres têm; como é a questão da feminilidade e masculinidade/virilidade. Isso tem relação com a questão dos direitos humanos, isso estabelece os papéis sociais de gênero e consequentemente a formação do mundo privado. Onde é que chega o espaço olfativo? Dentro de casa, do espaço íntimo. Assim, cria­-se uma noção de intimidade diferente.

Podemos pensar também que o espaço da intimidade no espaço colonial também foi o espaço onde estavam as questões de raça, sexo e as questões coloniais. E daí a dificuldade de tematizar estes temas “privados”. Há aí um processo de produção de sentidos junto com um processo da colonialidade. Então quando trabalho a questão de “descolonizar os sentidos” está nessa noção de que esse sentido foi colocado no espaço privado e eventualmente no espaço público de tal forma que a eles foram definidos alguns papéis.

Dessa forma, quando falo da questão da imaginação jurídica, é no sentido de procurar dar novas aberturas pra essas questões e mostrar como um trabalho que acesse outras lógicas e outros sentidos pode gerar novos significados pra expressões que aparentemente são canônicas, clássicas ou que a gente não verifica de outra perspectiva. A gente tem, literalmente, “visão” sobre coisas que não necessariamente envolvem visão; talvez incluam olfato, paladar; e isso não passa necessariamente por interpretação direta.

Foi citada na conversa a necessidade de abertura de alguns portais, de retomar autores que estão ‘esquecidos’, alguns dos quais já foram inclusive mencionados. Agregarias alguma outra ‘porta’ que é importante voltar a abrir?
Sim, eu inclusive citei na palestra o Fausto Reinaga, que trabalhou, no início do século XX, a questão da “revolução índia”, fez um projeto do partido índio e escreveu um livro chamado ‘Podridumbre de pensamento europeu’. Ele passou por uma alteração do pensamento: foi marxista, indianista; trabalhou as lógicas do marxismo e indianismo, foi para Europa, voltou para a Bolívia e com isso ele foi reconfigurando [o seu pensamento]. Esteban Ticona Alejo acabou de defender uma tese sobre o pensamento deste autor, na Universidad Andina Simón Bolívar, em Quito.

A gente trabalha a questão do marxismo a partir de alguns clássicos como Marx e Engels e, no máximo, Mariátegui. Mas talvez tenhamos que trabalhar Zavaleta Mercado, Fausto Reinaga, Bolívar Echeverría (do Equador)… Dentro do pensamento afro, citei na conferência o Zapata Olivella, que é um colombiano que poucas pessoas conhecem. Ele tem um livro chamado ‘A revolução dos genes’, além de ter escrito novelas como ‘Changó, el gran putas’. Ele foi trabalhando questões coloniais, questões do conhecimento afro, a partir disso. Ele fez uma autobiografia que se chama ‘Levantate mulato’, em que mostra como foi tendo a percepção da raça e da própria sociedade. Nesse ponto, poderíamos considerar, e hoje estamos trabalhando nesse sentido, que ele começou a fazer um trabalho “decolonial” antes de essa palavra estar sendo usada. Catherine Walsh vem insistindo nesse ponto, e, recentemente, Santiago Arboleda Quiñonez defendeu uma tese, também na Universidad Andina Simón Bolívar, em que analisa vários pensador@s afrocolombian@s que são ignorad@s pela universidade.

Em suma, temos muito material na própria América Latina. Eu dei exemplos também do Brasil. Há a lei que obriga o ensino da história da África e da história afrobrasileira, mas, por outro lado, não temos incorporado nos estudos da sociologia o pensamento de Abdias do Nascimento, que trabalhou com a questão do quilombismo. Não temos incorporado Lélia Gonzalez, que trabalhava a questão da interseccionalidade de raça e gênero, do conhecimento das mulheres, da diáspora africana a partir de uma noção que chamava de “amefricanidade”. Há ainda o Guerreiro Ramos, que somente é utilizado nos cursos de Administração, ignorando que é um pensador negro que abordou toda a questão do privilégio da branquitude. Acho, então, que, dentro do próprio pensamento social brasileiro, há vários autor@s negr@s que podem ser retrabalhados e que damos pouca atenção. Pensador@s indígenas, no Brasil, ainda não são reconhecid@s pela academia. E isso já deveria ter sido alterado.

Na América Latina, também temos Quintín Lame, que escreve “como um índio sobrevivia na selva colombiana”, que é um texto pouco conhecido mesmo na Colômbia. Temos muitas possibilidades de trabalhar com outras lógicas de abrir novos portais. Dei como exemplo na palestra também autores como Ottobah Cugoano, Olaudah Equiano, Soujourner Truth (que criticava o feminismo branco, a partir da ótica negra), além de ‘Memórias de um cimarrón”, do Miguel Barnet, que tem tradução em Português. Constantemente pensamos de forma pejorativa essas memórias e escritos. Vemos como se fossem menores. Mas eles agregam conhecimento de outras racionalidades, outras lógicas, outras cosmogonias, que não vêm sendo desenvolvidas.

Temos que começar a aprender com essas questões e textos que são ignorados, silenciados, invisibilizados. Têm muito material pra ir descolonizando o conhecimento. Em nosso próprio trabalho, tanto em termos de prática quanto em termos de teoria, eu acho que temos muito material, mas às vezes acabamos não conhecendo ou esquecendo.

*Entrevista realizada em 9 de Novembro de 2013.

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