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O rap e o ativismo pelos direitos humanos em Angola

Nos últimos cinco anos, entre 2011 e 2015, observamos o aparecimento e a frequência de protestos políticos em Angola, notadamente em Luanda, organizados por jovens sem filiação partidária direta ou militância institucional.

Buala (Parte 1 e Parte 2)
28 May 2015
Susan de Oliveira*

Em 2013, esses jovens ficaram conhecidos como fundadores do Movimento Revolucionário Angolano (MRA) e fazem parte da geração que soma a herança de duas guerras, a de Independência (1962-1974) e a Civil (1975-2002) e que estão, portanto, vivendo um recentíssimo período de paz ao mesmo tempo em que percebendo o limite do que restou do projeto de nação após esses conflitos. Eles são os descendentes dos revolucionários que dedicaram suas vidas à luta pela independência que culminou no atual regime o qual se anunciava socialista e democrático em seus primórdios, mas mostrou-se o contrário disso ao longo dos anos. Hoje, essa geração mais jovem enfrenta, sem perspectivas, as mazelas de um país capitalista e profundamente desigual que prospera economicamente e cultiva, a despeito disso, um caos social decorrente da falta de políticas públicas em vários setores – como saúde, educação, habitação, saneamento básico, emprego – e do ataque sistemático aos direitos humanos promovidos pelo atual governo de José Eduardo dos Santos que assumiu o poder em 1979, sucedendo a Agostinho Neto (1974-1979), então falecido. O MPLA que governa desde 1974, sendo José Eduardo dos Santos o presidente nos últimos 36 anos, enfrenta por seu turno a indignação de opositores entre os quais os partidos históricos UNITA e FNLA, e os mais recentes BD (Bloco Democrático), CASA-CE (Convergência Ampla da Salvação de Angola), PDP/ANA (Partido Democrático para o Progresso/ Aliança Nacional de Angola) e esse jovem Movimento Revolucionário apartidário que expressa a revolta social com mais veemência que os cinco partidos políticos juntos.

O Movimento Revolucionário Angolano, composto por jovens que se autodenominam “revus”, tem organizado vários protestos e manifestações por direitos humanos e justiça social. Tem uma agenda própria, organização horizontal e libertária, direção e ações coletivas que visam inicialmente conscientizar o povo da necessidade de mudanças profundas na sociedade angolana, sendo todas elas vinculadas à saída de José Eduardo dos Santos do governo (“32 é demais” foi o lema inicial do Movimento, relativamente aos anos de governação de “Zé Du”). No cerne dessa proposta, apoiada na transformação cultural e política dos jovens angolanos, estão vários rappers que, em suas letras e vídeos e em suas participações ativas nos protestos, produzem um discurso de forte impacto e penetração social sobre a violência policial e os ataques aos direitos humanos por parte do governo promovendo através de sua poética os valores igualitários dos jovens das periferias angolanas.

Nas palavras do rapper Luaty Beirão, conhecido como Ikonoklasta, podemos ter ideia do histórico dessa ligação dos rappers com o ativismo social do MRA. Diz ele:

Tu vens do Hip-Hop, daquilo a que se pode chamar o Hip-Hop verdadeiro, underground por natureza. O Hip-Hop é político, foi assim que surgiu, como uma arma, um meio para expressar a revolta. Desde Dead Prez, passando por Chullage, até ao MC K, são vários os MC’s e os temas que nos fizeram pensar, que nos despertaram a consciência para problemas urgentes da sociedade. A cena em Angola pareceu-me ser bastante interessante e original. Num concerto em que estive, a sala estava cheia de pessoal atento às letras e havia vários rappers a rimarem sobre o quotidiano e a vida do povo, o que só por si já é uma denúncia da pobreza em que as pessoas vivem. Estarei a romantizar? Ou poderá o movimento de Hip-Hop angolano ser também um movimento de resistência? O movimento Hip Hop angolano é a força motriz por detrás desta juventude que agora começa a rasgar a manta do medo e a gritar a plenos pulmões JOSÉ EDUARDO FORA! […] Aqui em Angola o Hip Hop consciente, vulgo underground, vulgo revolucionário, é sem sombra de dúvida a banda sonora desta juventude que está nas ruas e isso digo-o porque o testemunhei de forma inequívoca. (Jornal Mapa, 28/09/2012)

Muitos casos de violência ligados à repressão das manifestações organizadas pelos jovens angolanos têm repercutido desde 2011, e mais especialmente desde maio de 2012, quando em uma manifestação pacífica, em Luanda, a polícia angolana reprimiu violentamente a ação dos manifestantes culminando no desaparecimento dos ativistas Alves Kamulingue e Isaías Cassule. Em 22 de dezembro de 2012, o Movimento convocou uma nova manifestação para cobrar providências legais sobre o caso. Antes da manifestação, se dirigiu ao ministro do Interior, Ângelo Tavares, uma comissão composta por familiares dos ativistas desaparecidos e os representantes do MRA, os rappers Luaty Beirão, Carbono Casimiro, Mbanza Hamza e também Manuel Nito Alves.

Nito Alves

Conforme o Jornal Angonotícias, de 21/12/2012, Ângelo Tavares afirmou que a justiça angolana não tinha nenhuma denúncia formal e que mesmo com as várias diligências as investigações não avançaram na descoberta do paradeiro dos ativistas. Na ocasião, o rapper Luaty Beirão disse estar “decepcionado quando nos dizem que não seguem a imprensa privada e não são obrigados a saber. Ninguém é. Portanto alegam isso para não terem conhecimento do caso […]”. O ativista Nito Alves posicionou-se ceticamente em relação ao encontro: “No mínimo foi tudo uma bajulação política, eles queriam apenas conhecer quem são esses jovens. Esses dirigentes não vão resolver o problema”, disse ele ao mesmo Jornal. O jovem Nito Alves, então com seus 16 anos, teve razão em afirmar que a justiça e a polícia angolana ao receberem os representantes do Movimento Revolucionário pretendiam apenas identificar seus membros, pois ele próprio fora vítima de uma perseguição em dezembro de 2012 e de mais outra, por ocasião da manifestação marcada para o dia 19 de setembro de 2013. Essa última manifestação pretendia, além de continuar exigindo respostas sobre o desaparecimento de Kamulingue e Cassule, cobrar as responsabilidades do governo sobre outras brutalidades policiais como a tortura aos presos na cadeia de Viana (região de Luanda), a perseguição e espancamento das zungueiras (vendedoras ambulantes) e também sobre as demolições e despejos violentos em Mayombe, bairro de Cacuaco (região próxima à Luanda), bem como as providências em relação aos quase um milhão de famintos da região sul de Angola, Huíla e Namibe, vítimas da maior seca em 35 anos naquela área.

Antes dessa manifestação de 19 de setembro, precisamente no dia 12, o jovem ativista Nito Alves, já com 17 anos, cursando o 9o ano escolar e filho único, foi preso ao transportar as t-shirts que seriam usadas no protesto. O “crime” alegado foi difamação do presidente da República por estas frases estampadas nas t-shirts: “José Eduardo fora! Ditador nojento” e “Povo angolano, quando a guerra é necessária e urgente”. Essa última frase, aliás, é o título de um artigo e de um livro do jornalista Domingos da Cruz, publicados em 2009. O jornalista também foi acusado do crime de incitação à violência e à desobediência coletiva, mas foi absolvido pelo Tribunal Provincial de Luanda. O juiz confirmou a inexistência de tal crime no ordenamento jurídico angolano. Nito Alves, nesse caso, não poderia ter a culpa formada, mas, mesmo assim, permaneceu preso, pois era preciso retirar de circulação a ameaça que representava o jovem. E qual seria? A sua disposição revolucionária.

[…] durante o seu interrogatório e na cela da esquadra do Capalanca, onde passou a primeira noite, antes de ser transferido para as celas da Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPIC), Nito Alves revelou os seus dons de mobilização. Politizou os outros detidos sobre o regime e os seus actos e juntos fizeram coro contra as injustiças, para irritação dos seus guardas. O adolescente foi transferido da Direcção Provincial de Investigação Criminal de Luanda onde se encontrava em cela solitária para “lugar incerto” no dia 04 de outubro de 2013 e os advogados informaram que se encontrava adoentando mas que não tinham detalhes. (Jornal Maka Angola, 14/10/13)

Não se pode deixar de pensar no fantasma que o nome do miúdo Nito Alves evoca, sendo esse nome uma homenagem dos seus pais ao revolucionário comunista Nito Alves, morto em 1977, a mando de Agostinho Neto, após uma controversa tentativa de golpe por parte de governistas críticos ao MPLA que, sendo uma oposição interna do partido, foi chamada, portanto, de movimento “fraccionista”. Tal tentativa golpista teria sido organizada por Nito contra Neto e estaria na origem da alegada motivação para o massacre ocorrido em maio de 1977 no qual foram torturados, exilados e mortos milhares de angolanos tidos como traidores do regime, alcunhados de “nitistas”. O expurgo intra-governo realizado naquela época bem como o silenciamento posterior imposto sobre ele pelo regime de Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos é hoje um assunto que revive traumas e grandes tensões entre governistas e opositores. Segundo refere Lara Pawson (2014), é este acontecimento inaugural o que nos permite compreender a quase nula participação popular em manifestações em Angola como uma cultura do medo.

Nito Alves

Uma matéria no Jornal Maka Angola, publicada em 15 de setembro de 2013, nos oferece um pequeno relato sobre as atividades antecedentes do jovem revolucionário Manuel Chivonde Nito Alves vistas como tão ameaçadoras pelo governo angolano e que influenciaram na sua prisão:

Aos 15 anos, Nito Alves teve uma ideia simples e generosa: a de partilhar informação crítica sobre o quotidiano do país, com os seus vizinhos e transeuntes. Desde o início da primavera árabe, em 2011, Nito Alves tem realizado o seu projecto através de um mural móvel que exibe frente à porta da sua residência, em Viana, Luanda. Semanalmente, o jovem seleciona algumas páginas dos semanários, com matérias críticas, e cola-as num grande placar de madeira, o seu mural. A sua ideia gerou dezenas de leitores diários, entre vizinhos e transeuntes, que se detêm à sua porta para se informarem. Por essa iniciativa e pela sua participação em manifestações anti-regime, Nito Alves tornou-se uma figura de referência no Bairro do Chimuco, no município de Viana, onde reside. […] (Maka Angola, 14/10/13)

Nito Alves havia iniciado uma greve de fome, no dia 03 de novembro de 2013, em protesto contra as condições da sua detenção e foi libertado em 07 de novembro sob a condição de se apresentar quinzenalmente ao Tribunal Provincial de Luanda, segundo o Jornal Maka Angola, de 08/11/13. A liberdade de Nito Alves ocorreu em meio ao escândalo da confirmação do assassinato dos ativistas Cassule e Kamulingue pelo qual se realizou um grande protesto em Luanda, organizado pela UNITA, outros partidos de oposição e também pelo MRA com o objetivo de exigir justiça aos ativistas brutalmente mortos numa ação policial divulgada nestes termos:

Num relatório confidencial da autoria do Ministério do Interior entregue recentemente ao Presidente José Eduardo dos Santos, as autoridades assumem a morte dos activistas Alves Kamulingue e Isaías Cassule, desaparecidos desde o dia 27 de Maio de 2012. O ministro explicou que a DNIC moveu uma investigação e esta descobriu que os dois activistas foram mortos por operativos do SINSE e que os seus cadáveres foram atirados no rio Dande, no Bengo, numa área onde habitam jacarés que os terão devorados. (Clube-K-Net, 09/11/13)

No dia 23 de novembro, data do protesto por justiça a Cassule e Kamulingue, Luanda foi cenário de mais uma repressão violenta da polícia angolana que teve como principal consequência a morte do ativista e militante da CASA-CE, Manuel de Carvalho Hilberto Ganga, executado com um tiro nas costas enquanto colava pacificamente cartazes da mobilização num sítio que, segundo argumentou a segurança presidencial, seria considerado “impróprio”. Ao invés de adverti-lo, a polícia o matou.

Nas primeiras horas da madrugada do dia 23, o jovem encontrava-se a colar panfletos políticos no Estádio dos Coqueiros, que se situa numa zona residencial, na zona baixa da cidade, com vários edifícios altos. Do outro lado da estrada, a partir do portão principal do Estádio, há uma saída alternativa do Palácio Presidencial, situado no topo da colina, na Cidade Alta. Ironicamente, os panfletos pediam justiça para os assassinatos de Alves Kamulingue e Isaías Cassule, desaparecidos há mais de um ano, pelo seu envolvimento numa tentativa de manifestação de centenas de ex-membros da Unidade de Guarda Presidencial (UGP). (Maka Angola, 26/11/13)

O funeral de Ganga tornou-se um momento simbólico de demonstração de força, resistência, união e revolta da população que acompanhou o cortejo e foi impedida pela polícia armada – que parou a caminhada por duas horas nas imediações do cemitério alegando uma insólita justificativa de “falta de autorização” – de prestar ao militante da CASA-CE essa última homenagem, estando Nito Alves e outros ativistas do Movimento Revolucionário carregando à frente do cortejo a fotografia de Ganga.

O Movimento Revolucionário, além de organizar atividades realizadas diretamente nas ruas, como as manifestações e a distribuição gratuita de um DVD intitulado “A Geração da Mudança”, com diversas matérias de utilidade pública sobre o governo e a história e posições políticas do Movimento, também está fortemente apoiado nas redes sociais facebook e twitter e possui o blog “Central Angola 7311”, sendo este número uma referência à data de 07/03/2011, ocasião da primeira manifestação pacífica organizada pelos jovens que viriam a constituir o MRA e que foi impedida pela repressão policial.

Capa do DVD

A música oficial do primeiro evento de protesto dos jovens seria o rap “Estado da Nação” (Rap revolucionista) que faz parte do álbum “Ditadura da Pedra” (2011), do rapper Brigadeiro Dez Pacotes, o qual dirige uma incisiva e direta denúncia do governo de José Eduardo dos Santos. O rapper adota um tom de discurso falado intercalando o refrão: “A faca que mataram com ela teu irmão, não pendure no pescoço. Já nos comeram a carne e também estão a nos comer o osso. Exigimos o dinheiro do petróleo. É nosso. O meu povo está morrendo”. A letra relata os crimes cometidos a mando do regime angolano e pelos seus governantes da qual destaco os seguintes versos: “A pior arma que mata em Angola é a corrupção”, “Dirigentes canalhas, eles pensam que o país é deles”, “Miúdos em idade escolar a vender coca-cola para sobreviver”, “A arrogância da farda prevalece”, “Mamá zungueira é brutalmente espancada”, “Angola está entre os maiores produtores do petróleo mundial, não se justifica as constante subida do combustível”, “Este regime é pior que o colono, só não se deu conta quem ainda está no sono”, “Em cada mil crianças, duzentos e trinta e quatro morrem antes de completar um ano de vida”, “A verdade revela: bairros que vivem há anos à luz de velas”.

O blog “Central Angola 7311” é destinado a divulgar textos, imagens e eventos, sendo dele organizadores alguns membros que também são rappers. Numa visita ao blog, observa-se que a conexão do Movimento com o rap é intensa. Os rappers Sanguinário e Kallisto aparecem destacados nesse veículo em duas músicas nele publicadas, entre elas “Deixem-nos em paz” que foi, inclusive, slogan da manifestação de março de 2013 e veiculado também no seu panfleto de divulgação. Frases como “É o meu filho que morreu por negligência médica. Não se vive do salário, que se foda a ética!”, “Calar é consentir e eu não calo, mando lixar a profissão que exerço e falo!”, “Venham insultos e ameaças eu não me abalo. Há um segredo por trás da cortina, vou revelá-lo”, “Deixem-nos em paz, somos só 20%”, “Justiça parcial? Isso é ditadura!”, “Queremos algo para além da roupa que vestimos” e “Talvez um dia eu seja expulso, mas até lá, eu não mudo o meu discurso!”, foram extraídas da letra do rap para a apresentação dos vídeos no blog, o que nos mostra pelo conteúdo direto e pelo destinatário explícito – o governo angolano – que as frases escolhidas representam palavras de ordem do Movimento Revolucionário. Interessante é a seguinte nota no blog “Central Angola 7311” sobre os vídeos de rap nele apresentados e sobre o vínculo identitário do rap com o discurso de uma nova angolanidade:

Em Angola não há um género musical na atualidade que faça mais honra à memória da música angolana de intervenção social dos anos 60/70 do que o hip hop. Se outrora se musicava a angolanidade que ia do folclore à condição social de colonizado, hoje em dia, alguns rappers mantêm-se fiéis a esse espírito, e o que perdem pelo parco uso das línguas nacionais, compensam no facto de chamar os bois pelos nomes abdicando de metáforas para identificar o neo-colono que agravou ainda mais a condição social do “libertado”.

O rap é, por tal compromisso explícito, a música e a voz que reivindica a nova angolanidade pelo posicionamento cultural e político revolucionário dessa que é a “Geração da Mudança” à semelhança da “Geração de Vamos Descobrir Angola” da década de 1950, geração que forjou a ideia de angolanidade a qual, por sua vez, conforme declarou Viriato da Cruz, estabelecia uma continuidade com a Geração de “Voz de Angola clamando no deserto”, de 1900.

Queremos reavivar o espírito combatente dos escritores e africanos do século XIX, de Fontes (José da Fontes Pereira – 1823-1891), e dos homens que compuseram A voz de Angola clamando no deserto. Os poetas devem escrever acerca dos interesses reais dos africanos e da natureza social da vida africana, sem nada concederem à sede do exotismo colonial, ao turismo intelectual e emocional do prurido e curiosidade dos europeus (CRUZ, apud ANDRADE, 1975, p.6).

A nova geração revolucionária apresenta-se utilizando a crítica ao colonialismo e a afirmação de uma identidade angolana pautada tanto nas cobranças como nas dívidas relativas às gerações passadas que se traduzem nas lutas contemporâneas contra o atual regime. Temos, portanto, a possibilidade de reinvenção da idéia de revolução angolana, talvez mais proeminente que seu aspecto vanguardista de novidade, embora a contemporaneidade seja imperiosa em produzir rapidamente a transversalidade ou globalidade genérica das manifestações populares.

Mas, seria a revolução reivindicada por esse jovem Movimento uma possível reapropriação da angolanidade sonhada e preconizada pelas duas gerações revolucionárias que a antecederam no século XX? Haveria, junto às lutas atuais, a permanência de valores a serem cobrados na conta de uma revolução com pretensões libertárias iniciada na Guerra de Independência Colonial e interrompida tanto pelo expurgo de maio de 1977 como pela Guerra Civil? Essa é uma pergunta (e uma possibilidade) que ficará em aberto enquanto durar a efetividade das manifestações e até que a desejada transição governamental seja feita.

Em favor do caráter cultural que aproximaria os três projetos constata-se que, ao longo de pouco mais de um século, as três gerações – a de Fontes, a de Viriato e a de Luaty – autointituladas revolucionárias empunharam primeiramente a arma do discurso e da poesia para mobilizar a sociedade diante das injustiças sociais decorrentes dos planos político-econômicos coloniais e neocoloniais. Por outro lado, o que impediria de imediato uma visão aproximadora do pretendido processo revolucionário contemporâneo com os demais é que entre o surgimento da segunda geração revolucionária e a atual ocorreram as duas guerras, a Guerra de Independência e a Civil, sendo a segunda geração a que deflagrou ambas e expôs de fato a fratura interna do movimento independentista e da sua formulação nacionalista. A consolidação da Independência Colonial foi marcada pela fratura da Guerra Civil originada na cisão da legitimidade e confiabilidade da condução hegemônica disputada entre MPLA, FNLA e UNITA pela governabilidade de Angola. A guerra vencida pelo MPLA está longe de ter consolidado a hegemonia e realizado a sutura necessária à democracia e ao socialismo prometidos pelos agentes que fundaram o partido no final da década de 1950. Ou seja, da fratura abissal entre as promessas e a realidade que aí está é possível também que se produza uma ruptura definitiva com o legado histórico.

No período pós-guerra, Angola tornou-se, nas mãos do MPLA, uma economia poderosa no cenário mundial, cobiçada por investidores estrangeiros. Um país emergente economicamente, mas com uma desigualdade social brutal e alto índice de violação de direitos humanos. Hoje, o segundo maior país produtor de petróleo do mundo detém também a segunda maior taxa de mortalidade infantil do mundo abaixo dos cinco anos, segundo relatório da UNICEF de 2014. Aproximadamente, 25% dos angolanos não têm o que comer, ou seja, cerca de cinco milhões de pessoas ou quase a população de Luanda em termos comparativos. O sul de Angola registrou, em 2013, a maior seca em trinta e cinco anos e cerca de quase um milhão de pessoas na região sofreram seus efeitos sendo socorridas, sobretudo, pela ajuda humanitária de Ongs. No litoral predominam as terras mais caras e disputadas de Angola, prioritariamente dominadas pelos investimentos imobiliários que usam a força de trabalho local mesclada a de operários estrangeiros, como é o caso dos imigrantes chineses que ocupam também cargos de comando e administração enquanto aos angolanos cabe realizar serviços subalternos com força de trabalho mal remunerada ou mesmo escrava, o que gera sentimentos de revolta e xenofobia entre os mais pobres e explorados. Em qualquer caso, a miséria impera seja pelos salários baixíssimos, pelo abandono ou pelos despejos forçados em terrenos de interesse financeiro e comercial para os novos condomínios dos novos milionários, despejos nos quais a violência policial é empregada de forma impiedosa, como ocorreu na localidade de Cacuaco, em fevereiro de 2013, provocando grande preocupação das Ongs Anistia Internacional e Human Rights Watch, conforme foi veiculado à época no próprio blog dessa Organização. Os baixos níveis de investimentos públicos em reassentamentos para os despejados, em saneamento básico e políticas de emprego e assistência social para socorrer a fome, o desemprego e a falta de habitações dignas em contraste com a elitização dos espaços em Luanda, que tem hoje um dos metros quadrados mais caros do mundo, somados à violação de direitos humanos e repressão aos protestos são os estopins da revolta social em Angola.

O rapper MC Kappa (MCK) é uma voz que fala diretamente aos angolanos pobres e excluídos. As suas letras estão carregadas de interpelações aos cidadãos e ao governo, fazendo denúncias das injustiças sociais e da violência policial. Um trecho da biografia de MCK, no blog “MCK…Respeita”, dá conta da sua visão sobre o caráter do rap: “’A música é um instrumento de luta’, prega na abertura do álbum Nutrição Espiritual (2006), o segundo da sua carreira. Nela, defende ainda que o rap angolano tem de trazer a própria identidade, a própria cara, ‘a fotografia da voz’”. (“MCK…Respeita”, 2008)

Uma das músicas do primeiro álbum de MCK, Trincheira de Ideias, foi o estopim da agressão e morte de um jovem de vinte e sete anos, Arsénio Sebastião, conhecido como “Cherokee”, lavador de carros e pai de dois filhos. Ele foi abordado por militares angolanos que o espancaram em plena rua enquanto cantava o rap de MCK, “A Téknika, as kausas e as konsekuências”. Os militares, em seguida, amarraram-no e foi afogado no embarcadouro do Mussulo, a 26 de novembro de 2003. A criminalização da livre expressão de MCK – que compôs – e de “Cherokee” – que cantava o rap – é, por sua vez, emblemática do estado de exceção que se impôs no ano seguinte ao fim da Guerra Civil, ocorrido em 2002, e que pretendeu manter uma ordem arbitrária sem suspender formalmente os direitos civis recém afirmados mas que, na prática, não entraram em vigor com o acordo de paz. Ao autorizar a polícia a instalar o terror e a calar com repressão e violência as vozes dos manifestantes, e fundamentalmente impedir a interlocução e a reunião entre os cidadãos, o Estado democrático de direito estaria anulado.

A letra do rap que foi censurado aos ouvidos e vozes dos angolanos, no entanto, corresponde a uma dupla recepção do público – os que o ouvem e também os que o leem – a começar pelo título que, ao ser lido, causa estranhamento pela troca das consoantes – c e q pelo k – sendo este um dado estético que não implica em alteração fonética, mas que, ao subverter a norma padrão da língua como é comum no rap, dissemina significados políticos e cognitivos importantes, pois registra-se que estão a falar a língua das ruas. Nos seguintes versos, o rap apela primeiramente ao ouvir do cidadão: “Cidadão angolense acorda antes que o sono t’enterra/ se deres ouvido à minha poesia conhecerás/ a cara e o nome do mosquito que nos ferra/ saberás que a causa do caos do povo não foi apenas a guerra.” Os versos abrem um discurso que apela ao ouvir e à dúvida sobre os males de Angola serem justificados unicamente pela guerra como se de um destino inalterável se tratasse. Por isso, na sequência os versos vão ganhando um potencial de apelo à decodificação política da situação e à decodificação da própria técnica da escrita como ferramenta de crítica social enquanto, ao mesmo tempo, propõe que nela reside a dominação e que, decifrá-la, terá um poder emancipatório:

A inocência fabrica e multiplica as vítimas da escravidão moderna/ Como a massa desconhece a técnica da/ M.anipulação P.opular de L.ixamento A.ngolense/ ninguém sente o peso da algema./ Cultivam em ti o medo que semearam nos teus pais/ As tuas atitudes dependem da rádio e da televisão/ já sei que não vais compreender o refrão/ isto é uma figura de estilo irónica, pede explicação.

O “estilo irônico” reflete-se precisamente na ressignificação da sigla MPLA e da ideia de que a escrita manipula as opiniões especialmente de quem não a domina e que a televisão e o rádio, principais meios de difusão da informação em Angola, iludem o cidadão, por isso o refrão apela a um questionamento do conhecimento prévio e a uma crítica da técnica de manipulação e da tecnologia ao serviço do poder: “Seilaquê uauê/ Tira a poeira das vistas/ abre o olho mano, desliga a televisão/ rasga o jornal e analisa o quotidiano/ vai em busca da realidade do modo de vida angolano.” Assim, a letra afirma que é a análise da própria condição do cidadão angolano que precisa ser lida e entendida estando nela a verdade da situação na qual o cidadão se encontra:

Irmãos, qual é a liberdade que nos deram/ se a arrogância política não cessa?/Quem fala a verdade vai p’ó caixão/ que raio de democracia é essa?/ Nos livramos dos 500 anos de chicote/ mas não utilizamos a cabeça / depois da queda do colono/ em vez de uma independência / deram-nos quase meio século de má governação.

A ironia de que nos fala o rapper se assemelha a uma formulação maiêutica (socrática) de descoberta da verdade que se encontra no próprio indivíduo e na sua condição existencial. A ideia fundamental é produzir um ponto de vista voltado para a situação em que os cidadãos angolanos vivem, uma população de “deslocados nas curvas” e “mutilados” que só o são porque “os políticos querem assim”:

Somos os maiores importadores de pares de muletas / dentro e fora do mundo luso, as vacinas da pólio / não reduzem o elevado número em uso/ Dizem querer desenvolvimento p’rá Nação/ com 1 médico p’a mais de 90 pacientes/ e 1 mina p’rá cada cidadão?/ Indústrias paradas, 4º lugar da corrupção/ Ganhámos o prémio Nobel do paludismo e da malária/ gastámos o dinheiro na compra d’Audis recentes/ e comemos o arroz estragado das ajudas humanitárias.

O rap de MCK conclui-se com a ideia ainda mais irônica de que a informação foi dada, mas que mesmo conhecendo a verdade o próprio povo autoriza a sua exploração ao não protestar: “o povo conhece a verdade, mas cala/ o velho ditado diz: ‘O silêncio também fala’!” Nesse verso se coloca o silêncio como eloquente em si mesmo, denunciante tanto do consentimento ao discurso da subserviência como também do efeito repressor do discurso (e da cultura) do medo ratificado pela violência, o que corrobora a necessária intervenção do rapper e do próprio Movimento Revolucionário para darem palavras e voz a esse silêncio.

A letra de “Nzala”, um rap do álbum de MCK Proibido ouvir isto (2013), título dado por causa do fato ocorrido com “Cherokee” há dez anos, interpretada por MCK e Paulo Flores, ganhou versão de animação com efeitos de desenhos a lápis dos renomados cartunistas angolanos do Olindomar Estúdio no videoclipe homônimo. Os dois músicos são personagens da animação, sendo que MCK aparece como o personagem-narrador, inicialmente olhando-se no espelho cercado por várias fotos de um menino anônimo cuja história irá contar. Paulo Flores aparece sentado sobre a parte de cima de um tanque de guerra tocando melancolicamente o seu violão.

“Nzala” é uma palavra em quimbundo que significa fome, e tanto a letra quando a animação dos cartoons conta-nos a história de um miúdo que se torna um peregrino da fome assolado por todos os males já antes denunciados no rap “A Téknika, as kausas e as konsekuências”: um menino fica órfão após sua família ser massacrada pelas milícias angolanas na Guerra Civil, o verde das fardas e o vermelho do sangue predominam na cena da chacina da família presenciada pela criança. Depois disso, torna-se um “deslocado” saindo do Bié: “chegou em Luanda mutilado, sem a perna”, vitimado por uma bomba subterrânea. Segundo a letra de “A Téknika, as kausas e as konsekuências”, há uma mina para cada cidadão angolano. E, assim, o órfão passa a viver como miserável nas ruas, disputando comida no lixo com animais e sobrevivendo de serviços subalternos que não lhe dão nenhuma dignidade para sair da situação em que se encontra: “Transformou-se em puto de rua aos olhos do governo/ dorme debaixo da ponte de inverno a inverno/ sem calor materno/ divorciado do caderno/ Parece eterno o sofrimento do pequeno/ Escravo moderno do mercedes e do terno.”

O rap nos mostra que o menino órfão é o retrato da “Nzala”, da fome que em Angola é uma das grandes catástrofes do interior do país às periferias de Luanda, mas que essa é, sobretudo, uma consequência histórica da intervenção violenta do Estado e da Guerra que destruiu a vida familiar do miúdo, pois é somente depois da morte dos pais, ao deslocar-se do Bié para Luanda, que ele conhece a fome, condição gerada pela ação daqueles que deveriam dar proteção e atender às suas necessidades básicas. A ausência da ação assistencial do Estado é determinante na narrativa de “Nzala”.Também o lugar comum da ajuda social não aparece em socorro do menino, sequer como aquele “arroz estragado das ajudas humanitárias”, pois nenhuma redenção para tamanho crime é possível. E é justamente na pressão contra meros paliativos de consciência que reside a força do rap como apelo à garantia dos direitos humanos que abrange mais que negociar as migalhas do sistema na forma da oferta de comida e abrigo às crianças órfãs, porque defende com mais profundidade uma transformação social contra uma cidadania no limite da exclusão postulando o que, hoje, para muitos angolanos pode mesmo ser inatingível: o direito à dignidade de cada um, de cada criança de crescer e viver com a família, com o amor dos pais e irmãos, de ir à escola e ter escolhas, um direito fundamental que tem sido usurpado às gerações que passaram pelas duas guerras sucedendo-se à elas uma verdadeira população de órfãos, de irmãos que criaram irmãos ou de crianças que se criaram sozinhas percorrendo a trajetória da orfandade familiar à orfandade social e política, o que nos leva ao reconhecimento de que é dessa trajetória que surge um Movimento Revolucionário tão jovem, uma “frátria órfã” (KEHL, 2008) composta por irmãos, os “manos” a falar com uma linguagem penetrante sobre a realidade de todos os filhos de Angola.

Bibliografia
ANDRADE, Mário Pinto de. Antologia temática de poesia africana: na noite grávida de punhais. Vol. 1. Lisboa: Sá da Costa, 1975.
Angola – Da utopia para a realidade -“Desabafos Angolanos”. A Téknika, as Kausas e as Konsekuências. Disponível em:
<http://desabafosangolanos.blogspot.com.br/2006/10/tknika-as-kausas-e-as-konsekuncias.html> Acesso em 10/12/13.
Central Angola 7311. Disponível em: Acesso em 10/12/2013.
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PAWSON, Lara. Em nome do povo. O massacre que Angola silenciou. Lisboa: Tinta da China, 2014.

*Pós-doutorado em Literatura Comparada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (2015); doutorado em Literatura (2006), mestrado em Literatura (2001) e graduação em geografia (1993), todos pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pelo Instituto Camões, Lisboa (2009). Professora do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC, desde 2009. Experiência na área de letras, com ênfase em literatura portuguesa, literaturas africanas de língua portuguesa, estudos pós-coloniais e literatura comparada. Os principais temas de interesse e pesquisa são as literaturas africanas, as culturas africanas em África e na diáspora, as literaturas e culturas das periferias com ênfase no rap e formações culturais do hip hop. Coordena o Núcleo de Estudos de Poéticas Musicais e Vocais. Atualmente é docente do Programa de Pós-graduação em Literatura da UFSC.

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