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Conversa do Mundo I- Leonardo Boff e Boaventura de Sousa Santos

A primeira Conversa do Mundo decorreu em Araras, Rio de Janeiro, em Outubro de 2012, entre Leonardo Boff e Boaventura de Sousa Santos.

Leonardo Boff nasceu em Concórdia, Santa Catarina. Estudou filosofia e teologia. No final dos anos 50, ingressou na Ordem dos Frades Menores, franciscanos, e foi professor no Instituto Teológico Franciscano e em vários centros de estudo e universidades no Brasil. Fora do Brasil, foi professor-visitante nas universidades de Lisboa, Salamanca, Harvard, Basel e Heidelberg. Desempenhou um papel fundamental na reflexão que veio a resultar na conhecida Teologia da Libertação. Foi sempre um defensor dos direitos Humanos e ajudou a formular uma perspetiva dos Direitos Humanos a partir da América Latina. Em 1984, as suas teses ligadas à Teologia da Libertação valeram-lhe um processo pela Sagrada Consagração para a Defesa da Fé, ex-Santo Ofício, no Vaticano. Em 1992, renunciou às suas atividades de padre. “Mudou de trincheira para continuar a mesma luta”. Atualmente vive no Jardim Araras.

Transcrição.

Transcrição em inglês disponível aqui.

 

Boaventura de Sousa Santos – Leonardo é uma alegria enorme estar aqui neste lugar paradisíaco para nós podermos conversar e passarmos uma conversa, a conversa do mundo.

Leonardo Boff – A conversa do mundo.

Boaventura de Sousa Santos – A conversa do mundo e portanto eu vou-lhe perguntar e o Leonardo pergunta-me a mim, a gente vai conversando os dois sobre alguns temas que nos preocupam a ambos e agradeço-lhe muito a hospitalidade maravilhosa de estarmos aqui e de podermos fazer este trabalho. Então qual é a ideia? A ideia, eu tenho agora neste momento um projecto europeu e esse projecto é bem um sinal dos tempos na Europa porque é um projecto em que me disseram que eu devia concorrer com a ideia que me desse mais prazer estudar, e então eu também neste momento só me interessa fazer as coisas que gosto e este projecto é um projecto que tem esta ideia simples a Europa depois de cinco séculos de colonialismo e de capitalismo para mim a Europa é Europa que fez o colonialismo e o capitalismo porque há outras Europas, há outras Europas dentro da Europa, os nossos emigrantes, todos os filhos dos descendentes que vieram do norte de África, que vieram de África e que são as outras Europas estou a falar da Europa dominante que foi aquela que conduziu o colonialismo e o capitalismo. A Europa ao final de cinco séculos não tem nada a ensinar ao mundo, aliás vê-se pela crise actual que é apenas um sintoma, ela não consegue resolver uma crise depois de cinco séculos andar a tentar resolver a crise de todo o mundo não consegue resolver a sua crise e por outro lado o colonialismo incapacitou a Europa de aprender com a experiência do mundo.

Leonardo Boff – Eu diria que a Europa completou o seu ciclo histórico, ela esgotou as suas possibilidades de levar avante o projecto que ela tinha, que era grandioso de certa maneira. Por um lado o projecto da técnico-ciência, por outro lado mais humanístico, o projecto da autonomia, dos direitos são realidades que nós não podemos perder. Agora eu acho que ela não tem mais virtualidades internas, com os próprios recursos sair da crise em que ela se atolou. Que é uma crise agónica, isto é, ela completou o seu ciclo e eu acho que ela tem capacidade de renovar-se desde que ela supere a sua intrínseca arrogância, deixar referência cultural no mundo, etc., então o sistema fechado e abrir-se como sistema aberto e dialogar com o mundo. Nós aqui da América Latina de certa forma somos o extremo ocidente, temos raízes da Europa não podemos negar, meus avós são emigrantes italianos, trouxemos aquela cultura. Por outro lado nos enraizamos aqui de tal maneira que eu me sinto brasileiro, estômago brasileiro conseguiu digerir culturas de povos que vieram de 60 países diferentes. Mas há um movimento enorme, e eu estou feliz que você tem captado isso, mostrando que a América Latina está fazendo experiência de democracia que a Europa não fez até hoje e que nós estamos criando por nós, por nosso desespero, eu sempre digo, a libertação nasce da lasqueira da vida, isto é as pessoas são obrigadas a buscar caminhos, e hoje nós temos coragem de buscar, antes eram logo reprimidos e tínhamos um superego castrador que nos impedia de aprender por nossas cabeças, fazer os nossos ensaios. Hoje não, temos até orgulho de fazer, vamos fazer um caminho nosso, descobrir um tipo de desenvolvimento que não seja devastador da natureza embora agora grande parte ainda está sendo, mas percebemos que por aí não é o caminho temos que fazer um caminho nosso.

Boaventura de Sousa Santos – Mas Leonardo eu acho que, eu concordo que realmente hoje na América Latina talvez estejamos a assistir a isso mesmo. Agora eu pergunto quais são as condições que tornaram possível isso, porque normalmente a ideia que a gente, que eu tenho e que vamos vendo por aí, é que no princípio na década de 2000, aliás começa com o Hugo Chávez em 1998, nós vamos assistir a um conjunto de governos progressistas da América Latina muito diferentes entre si obviamente, mas que vão trazer experiências interessantes que é manter, digamos assim, não questionar o modelo neoliberal de desenvolvimento eurocêntrico, mas conseguir mais redistribuição social. O Brasil neste momento com exactamente, com esse desenvolvimentismo que a gente chama agora extrativismo, porque voltamos a exportar natureza e o Brasil com uma dinâmica industrial tão grande, a sua dinâmica está nos minérios, está na fronteira agrícola ou seja nas commodities não está na indústria digamos assim, isto também está a ser feito de uma maneira que é quase neocolonial, o que está a acontecer com os povos indígenas, com as populações afrodescendentes, como é que é possível, quer dizer o que a gente tem que se perguntar é se este modelo, é uma locomotiva tudo o que aparece no caminho é para trucidar o indígena é um obstáculo ao desenvolvimento. Como é que a gente vai resolver este problema? Uma das questões que se me põem recorrentemente, não é.

Leonardo Boff – Eu acho Boaventura que você tem razão nesse contexto, digamos, geopolítico latino-americano, um certo vazio da presença americana aqui propiciou então estados mais autónomos. E a grandeza de Chávez é um dos poucos no mundo que é anti-imperialista explícito, que se enfrenta com o império, a maioria se ajeita, evita as críticas. Agora eu acho que há um elemento Boaventura que eu considero de grande importância e que está na base dessas novas experiências políticas, é a erupção dos pobres na história. A partir dos anos 50 houve uma articulação de todos os movimentos sociais de indígenas, de afrodescendentes, de mulheres, quebradeiras de coco, camponeses e a grandeza desse movimento foi, que é um movimento social com poder social, feito na base, eles se organizando como podiam, ele conseguiu se afunilar num poder político encontrou no caso do Brasil muito claro, criou o PT, isso é uma criação das bases. Eu lembro nós as comunidades de bases que são no Brasil 100 mil quase milhão e meio de círculos bíblicos, o povo dizia “nós precisamos criar nossa arma política para levar avante nossos sonhos. nós não entramos no PT, nós fundamos o PT”

Imagens e barulho da natureza

Boaventura de Sousa Santos – Na Europa, os jovens estão na rua, quer dizer a rua como eu costumo dizer é o único espaço público na Europa que ainda não está colonizado pelos mercados financeiros. Portanto as instituições estão fechadas ao povo, acha que há o risco, isto é uma grande lição para a Europa e para o mundo mas pode haver um risco que estas formas de participação que foram tão ricas na última década, possam também ter uma certa regressão aqui, temos que estar vigilantes nesse sentido?

Leonardo Boff – Eu acho, que a reversão é difícil, porque se criou uma consciência colectiva que o grande sujeito somos nós, que nós cansados de votar nos nossos opressores resolvemos votar em nós mesmos, isto é, votamos em Lula, votamos no PT, isso é uma conquista nossa e não vamos entregar nunca à burguesia, as nossas figuras carismáticas, o nosso movimento social. Então há essa consciência de autonomia inclusive face ao Estado então é uma cidadania, diria quase quotidiana que se recria a partir da participação, porque sem participação não há cidadania. Então o forte, pelo menos as partes que eu conheço do Brasil, um pouco da América central, é a rede de movimentos sociais de mil maneiras que se comunicam entre eles e se encontram, trocam experiência, isso cria uma consciência que um fraco, mais um fraco não são dois fracos é um forte. E a grandeza, eu acho, desse movimento é que ele tem uma prática social muito activa e simultaneamente tem os seus corpos de pensadores que acompanham, que é gente do povo.

Boaventura de Sousa Santos – Os orgânicos, os intelectuais orgânicos.

Leonardo Boff – Que não somos nós, eu entro pela porta do fundo, eu fui educado na escola do Faraó, não fui educado na escola dos oprimidos, mas sou um aliado deles, entro pela porta do fundo escuto, mais que posso, estou ali, empresto meu nome, quando tinha polícia eu vestia o hábito franciscano para impedir que fossem presos e eles não podiam prender porque criam problema prender um padre ainda mais um São Francisco, não pode.

Boaventura de Sousa Santos – (risos) Eu concordo com essa leitura o único problema que eu vejo nela e que no fundo também deve ser o seu problema é que nós conseguimos, e realmente, eu também vejo muitas vezes como o que eu costumo dizer eu não sou um intelectual de vanguarda, eu sou um intelectual de retaguarda. Eu vou, escuto, facilitador, sou um facilitador, sou muitas vezes o porta-voz, como o Leonardo é muitas vezes, é portanto quase ventrículos muitas vezes, por pessoas que não têm voz e a gente vai de alguma maneira ajudando. Agora a institucionalidade que se foi criando no movimento popular que eu penso que é extraordinária, ela teve um problema de escala, isto é, nós democratizamos muitos a política local.

Leonardo Boff – É, eu acho que isso é um dos gargalos que essa força social tem quando ela se transforma em força política que ela não consegue colocar cunhas no sistema, ou muito poucas. Agora eu acho que na medida que esses movimentos conseguirem colocar representantes lá, que não se corrompem e que mantêm uma organicidade permanente com base e vejo muitas reuniões de ministérios convidam lideranças populares e para discutir e são aqueles que fazem mais discursos, mais belos discursos, porque eles não falam palavras, falam coisas.

Boaventura de Sousa Santos – Exactamente.

Leonardo Boff – Falam coisas.

Boaventura de Sousa Santos – Experiência.

Leonardo Boff- Eu lembro uma reunião recente com a ministra dos direitos humanos do Rio de Janeiro e foi óptimo, quando as lideranças populares começaram a falar o que é que significa essa pacificação que foi feita no Rio de Janeiro, as contradições como eles militares se aproveitam para violar as meninas para ter vantagens e elas se opuseram violentamente dizendo que não se resolveu o problema básico. Então mas a ministra ficou pasma, portanto ela escutou essas coisas. Então mais e mais está havendo isso no país.

Boaventura de Sousa Santos – Nós conseguimos, algumas vitórias são significativas ao nível da redistribuição social e não só aqui no Brasil, noutros países da América Latina, conquistámos muita coisa no campo da política da diversidade, do reconhecimento da diversidade, é o país das acções afirmativas, das cotas, do conselho nacional de educação finalmente mostrar os estereótipos raciais das caçadas do Pedrinho, do Monteiro Lobato, temos um sistema especial de educação indígena, educação quilombola, dá-me impressão que a lógica do poder ela faz todas as concepções desde que não lhe toquem no dinheiro, na acumulação. Quando se trata de coisas que tem na sua frente, os grandes direitos minerários agora ali em Belo Monte, toda a região do Xingu, quando os indígenas se põem no caminho do agro-negócio, aí a violência no campo, é extraordinário, porque é que essa democracia, porque é que a gente não consegue vencer esta ideia, que é extrajudicial, quer dizer, não é um estado de direito a violência no campo já há 43 líderes assassinados indígenas desde em 2012 segundo os dados do CIMI, como é que estas contradições, onde por um lado há tanto um lado luminoso, e por outro lado há este lado preocupante.

Leonardo Boff – Sombrio

Boaventura de Sousa Santos – Muito sombrio de uma acumulação sem regras extremamente violenta, que no fundo arranja pactos de uma ou outra forma com o governo federal, fundamentalmente com base na ideia a gente garante o desenvolvimento mais arrecadação, mais renda para o Estado, mais bolsa família, mas paciência temos que sacrificar os indígenas.

Leonardo Boff- Eu acho Boaventura que é uma profunda incompreensão da sociedade, eu acho até estratos importantes até do governo, o que é que é uma etnia indígena? Eles nivelam numericamente e não percebem a riqueza da diversidade cultural que são línguas, que são tradições, que são mitos que são povos que mostram outra maneira de ser humano, podemos ser humanos como tupis guaranis, como yanomamis, não são ser humanos como nós brancos europeus ou como aqui miscigenados. Então isso não entra, agora do momento em que se percebe essa qualidade, que nós temos muito que aprender deles, e hoje é urgente revisitá-los porque eles nos ensinam como tratar a natureza. Ele não entra numa floresta sem saudar umas plantas, sem pedir desculpas às flores, sem se entrar em comunhão com os pássaros, animais pede licença e entra na floresta. Essa reverência, não derruba uma árvore sem fazer um rito dizendo “vamos derrubar porque precisamos fazer uma porta, um remo mas vamos plantar 4 ou 5.” Nós perdemos totalmente essa reverência eu li esses dias um dito que vem lá dos indígenas que quando o branco vem com um machado e derruba as grandes árvores antes de cair a árvore olha ao lado e largua uma lágrima dizendo o cabo desse machado é feito do meu corpo, feito de madeira. E essa madeira está derrubando árvore.

Boaventura de Sousa Santos – Mas é esta ideia, que ainda agora vimos os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul que têm estado a ser expulsos das suas terras pelo agronegócio e que ameaçam com o suicídio colectivo, nós chamamos a isso, eles próprios dizem suicídio colectivo e realmente quando pedem o tractor, é o tractor que venha enterrá-los porque eles não querem sair das suas terras nem vivos nem mortos. Agora isto é um suicídio, daqui a um pouco entramos mais na teologia, mas isto é um suicídio ou é um sacrifício?

Leonardo Boff- Eu acho Boaventura que é uma espécie de grito de indignação, protesto contra essa cultura que os mata, e aí eles têm um mito fundador deles, no caso dos Guarani Kaiowá acho que vale a pena dizer nesta entrevista, nesse nosso diálogo, porque a entrada dos brancos que desmataram tudo, tiraram suas terras, criaram o grande agronegócio matou o sentido fundamental de vida deles, qual é o sentido fundamental deles? Que todo o indígena Guarani Kaiowá e os outro também que são várias etnias, eles vão chegar ao céu, mas só chega ao céu no dia em que a partir de várias encarnações morreu, se encarna num jaguar, se encarna num animal qualquer, até ele se encarnar numa formiga e a formiga sobe árvore até à ponta e de lá ela voa para o céu e dizem tiraram nossas árvores, tiraram nossas terras, nós nunca vamos chegar ao céu estamos perdidos, então a vida não tem sentido e eles se matam em protesto e o governo, não adianta o governo mandar para lá psicanalistas e junguianos e freudianos para ver o nível de depressão dele, tem que fazer a reforma agrária, delimitar as terras, replantar, reflorestar, resolver o problema deles.

Boaventura de Sousa Santos – Ora bem Leonardo cá estamos a discutir as possibilidades do mundo aprender consigo mesmo porque realmente muitas vezes o problema nem é o Sul aprender com o Norte, ou o Norte aprender com o Sul é realmente as estruturas de poder desigual no mundo que o dividiram tanto que tornaram muita experiência do mundo invisível, marginalizada, não reconhecível, não valorizada e há aqui uma coisa que eu penso que, que gostaria muito de discutir consigo nesta questão das lições que o mundo do Sul global que foi enfim, vitimizado pela exclusão causada pelo colonialismo e pelo capitalismo, este Sul global anti-imperial podem ensinar no sentido de ser uma contribuição para o mundo e portanto no fundo idealmente um dia não haveria nem Sul nem Norte, nem este nem oeste haveria diversidade diferente e igual digamos assim. Mas enquanto isso não ocorre uma das questões que eu gostava de discutir consigo é se é possível que a própria teologia da libertação seja uma lição não só para igreja europeia mas para a Europa no seu conjunto e esta questão é complicada para mim pelo seguinte, é porque a teologia da libertação, corrigir-me-á se eu estou errado, ela tem em si mesmo um pecado original que é o colonialismo, o cristianismo entra aqui neste continente como uma imposição colonial, os pecados originais não são redimíveis segundo a teologia católica, como é que a teologia da libertação pode redimir-se e transformar-se numa força anticolonial e mais do que isso ser um novo espelho para a própria Europa ela que começou por ser um espelho arrogante, um espelho imperialista porque era no fundo a religião verdadeira as outras não o eram, como é que ela pode fazer esta inversão sem deixar de ser o que é?

Leonardo Boff – Você tocou no ponto fundamental e é o ponto que o vaticano não tolera porquê, por duas razões. Primeiro porque na periferia da galáxia cristã do império cristão apareceu um pensamento vigoroso que não é simplesmente eco da voz do centro é um pensamento que nasceu escutando o grito do oprimido, e a teoria da libertação não se entende sem esses nascedoiro, ela escutou o grito do oprimido primeiro operário, depois o afrodescendente, o indígenas, as mulheres, mil oprimidos que existem e a opressão convoca libertação. Eu já nos anos 80 entendi que a mesma lógica que explora pessoas, que explora classe, explora o país na mesma logica explora a natureza. Então que a natureza, o planeta terra é o grande pobre explorado se a marca registrada da teoria da libertação é opção pelos pobres contra a pobreza a favor da vida, da liberdade então dentro dessa opção pelo pobre tem que caber o grande pobre que é o planeta terra e a teologia da libertação tem que virar uma eco-teologia da libertação.

Boaventura de Sousa Santos – Essa transformação na sua trajectória da teologia que obviamente não é partilhada por todos os teólogos da libertação porque no fundo não há uma teologia da libertação, há muitas teologias da libertação quer dentro do cristianismo quer fora do cristianismo existem outras teologias, e houve essa transição da opção pelo pobre para a opção pela comunidade terra, no fundo na sua transição, agora o grito do pobre ouve-se e o grito do rio? A gente ouve o grito do rio?

Leonardo Boff – É eu acho que a gente escuta o grito dos povos que são as florestas, que são os rios. Aí eu acho que a contribuição que a teologia da libertação indígena traz que é muito forte na América central, no México ela não é um discurso hegemónico, e eu sinto pena porque eu acho que as religiões e as igrejas tem muito a dar nesse momento de transição, porque a gente sabe que nas grandes passagens paradigmáticas aquelas estâncias que cultivam sonhos, utopias etc., são religiões sentidos de vida elas ajudam a fazer a passagem e lamentavelmente o cristianismo não está projectando utopias, não está projectando sonhos, e está virando uma fortaleza defendendo-se contra o mundo moderno.

Boaventura de Sousa Santos – Mas aí é que é interessante ver que afinal toda a energia que nasce da teologia da libertação, ela não vai ser propriamente condenada apenas pelos poderes seculares autoritários, vai se condenado pelo próprio vaticano.

Leonardo Boff – Pelo próprio vaticano.

Boaventura de Sousa Santos – E o Leonardo Boff é obviamente uma das vítimas desse poder inquisitorial que tenta matar à nascença a possibilidade de uma transformação social emancipatória com base no ensinamento, enfim, de cristo e da religião a partir da perspectiva dos pobres que no fundo seria a mensagem de cristo tal e qual como ela é interpretada pela teologia da libertação ou seja é a própria igreja institucional que vai lutar contra os seus filhos. A minha pergunta é o seguinte a teologia de libertação levada às suas consequências não implica a destruição das igrejas institucionais?

Leonardo Boff – Eu acho inclusive eu e Felisberto cunhamos um termo que entrou depois no discurso teológico, um termo técnico, a eclesiogênese, a génese de uma nova igreja a partir do povo dos povos oprimidos, Roma o que mais teme é exactamente isso que é surja um anti-poder que se organiza não mais no estilo piramidal da igreja do sagrado poder, mas uma igreja rede-comunidade onde todos participam onde se organizam, funciona. E Roma eu mesmo discutindo com o cardeal Ratzinger ele diz eu admito as comunidades de base mas elas não têm condições, ela não realiza duas condições, manter a unidade da igreja, então eles têm um conceito quase militarista, de unidade, de uniformidade, e não consegue absorver a tradição, vocês nascem aí dos povos negros, índios e não conhecem os padres da igreja. Quais padres gregos e latinos, nós temos nossos padres lá, nossos missionários, nossos sábios. Então o que Roma na verdade Boaventura é uma disputa do poder, dois poderes, um que vem da vida, com a lógica da vida, criativa não hierarquiza, se relaciona. E outra lógica do poder que é piramidal, que é organizativa, institucional, onde não viceja a criatividade, mas é o princípio da ordem, lá o princípio da vida, ordem e vida eles se confrontam.

Boaventura de Sousa Santos – Mas eu vejo hoje a emergência realmente da religião de facto, ela não é pensável sem este mundo muito desigual em que a gente está, está a aumentar a desigualdade social, é uma revolta contra uma dominação colonial e capitalista, que nasce, que começa muito cedo as próprias cruzadas que no fundo são a primeira emergência de uma luta de agressão, digamos assim, que não há dúvida nenhuma que são, os senhores feudais obedecendo ao papa como hoje se obedece as forças aliadas aos EUA, ou seja a desigualdade social é que está a fazer o apelo à religião. A religião não é o ópio do povo, está bem, não vamos entrar por aí mas muitas vezes funciona como tal.

Leonardo Boff – Tudo aquilo que é são, é sadio pode ficar doente, eu acho que hoje grande parte das religiões são doentes, são doentias e da doença do fundamentalismo, dos exclusivismos, da auto-arrogância e elas não se colocam juntas aceitando a diversidade religiosa, todo o mundo é a favor da biodiversidade quanto mais pássaro, quanto mais peixe, quanto mais arvores, chega na religião o cardeal Ratzinger, não. Só uma verdadeira todas as demais são falsas. E eu não todas elas têm a sua legitimidade, porquê? E aí vem a minha teoria, minha interpretação Boaventura, porque todas bebem de uma mesma fonte que é o inominável que é uma experiência, não da razão, mas acho que é uma experiência do sentimento do mundo da razão cordial, da razão sensível, que a espiritualidade e ela se canaliza por muitos canais que são as religiões, alguns enferrujados, outros maiores, outros menores, mas todos bebem daquela fonte.

Boaventura de Sousa Santos – A gente hoje transformar, não sei se a gente não precisa, primeiro ter a ideia de que realmente, não temos acesso à totalidade e portanto não temos acesso a Deus, nem sabemos se ele existe. Talvez devamos apostar na existência dele como o Pascal, como falávamos, se calhar viver nessa incerteza mas eu acho que o Leonardo tem a certeza que Deus existe. Eu não tenho, eu acho que seria bom tê-la, nem sei se seria bom, porque eu acho que se Deus existisse eu tinha que lhe cobrar tanto que como não sou violento não o matava, não é, mas declarava-lhe uma guerra total à sua hipocrisia ou ao seu abandono, para quê que ele fez isto, se isto não tem sentido porque é que a gente busca um sentido? Se calhar o sem sentido é esse mesmo Deus, Deus é o sentido de todas as coisas, ou é o sem sentido de todas as coisas e qual é a diferença entre as duas hipóteses francamente.

Leonardo Boff – Não eu acho aquilo que o Chico Buarque disse “porque ele fez se depois ele desfez” e eu acho que nenhuma teologia que conheça nem pensamento oriental, ocidental deu conta da maldade do mundo. Budismo tentou com a negação do desejo, mas são como receita de culinária para matar a fome não basta ler receitas, você pode salivar quanto queira mas não mata a fome, mata a fome comendo. E nós não encontramos nenhum alimento que se combine com a ideia de Deus e a maldade do mundo, lá os grandes pensadores tentaram fazer apologia tentando defender Deus contra a maldade do mundo, mas eu penso que Freud tem razão porque é verdadeiro isso quando dizia isso “se eu chegar lá e Deus existe eu tenho mais perguntas a fazer a ele do que ele a mim e vai ser pela eternidade fora”. Eu acho a teologia sincera tem que reconhecer isso, agora no fundo nós vivemos, e eu, os franciscanos, os teólogos franciscanos medievais desenvolveram um pouco isso, nós vivemos, de uma saudade de Deus, quer dizer não podemos negar que há uma presença e que se irradia, que nem tudo é absurdo que há um amor, que há o perdão, que existe isso. Por outro lado, há uma ausência terrível, nos dilacera que é o crime, a maldade e eu tento combinar isso Boaventura dentro de uma visão cosmológica, dizendo que nós nascemos de um grande caos, que foi o Big Bang aquela grande explosão inicial e que a evolução é uma maneira de colocar ordem no caos mas o caos sempre acompanha, em termos humanos o ser humano como demente e sapiens, sapiens e demens, tudo isso vem de um transfundo de energia inominável, é um oceano sem margens para o qual nós não temos nome, onde tudo é a emergência dele, algumas emergem voltam aquele nado, algumas ganham consistência, de abuso da partícula de Deus no fundo é isso que a emergência da energia se estabiliza, porque descobriram que o universo está cheio de uma espécie de véu, de onde a energia bate ela se cristaliza e vira partícula. A ciência nos mostra isso e a religião disse quem colocou em marcha aquilo é inefável, é inefável, é o mistério, é inominável, é aquilo que as religiões dizem quando falam de Deus.

Boaventura de Sousa Santos – Isto é, eu tenho uma visão, realmente durante muito tempo lidei com conceito de desenvolvimento alternativo, desenvolvimento sustentável, desenvolvimento integral, todos estes adjectivos que nós fomos acrescentando ao conceito de desenvolvimento para o tornar mais agradável e enfim, no fundo mais aceitável. A verdade é que o conceito de desenvolvimento não se liberta nunca do conceito de crescimento e portanto no fundo e nunca se liberta do conceito de que a natureza é um recurso natural e que está à nossa disposição incondicionalmente e que no fundo é inesgotável, portanto os movimentos indígenas, as lutas sociais dos últimos 20 anos vieram trazer um outro paradigma que não é o desenvolvimento alternativo mas a alternativa ao desenvolvimento.

Leonardo Boff – Exacto, perfeito.

Boaventura de Sousa Santos – Então aparece não a prosperidade mas o viver bem, o que é viver bem, não é viver melhor, não é a acumulação de bens é uma vida em que nós por exemplo acabemos com o conceito de pobreza, por exemplo os povos indígenas, é curioso as línguas quéchua não têm conceito de pobreza por exemplo, as línguas ameríndias, porque a pobreza é sempre colectiva, e é resultado de uma catástrofe, de uma inundação, de uma seca, não há pobreza individual, e portanto nós não saímos nesta transição deste modelo, pelo contrário aprofundamos o modelo e justificamos, a destruição da natureza, a destruição dos povos indígenas o suicídio colectivo deles é tudo parte de darmos bem-estar à grande maioria e a maioria quer a bolsa família, quer a minha casa minha vida paciência os indígenas são um estorvo acabemos com eles, é possível o meu problema é o equilíbrio, porque se a gente, um certo equilíbrio como se dá uma transição mas era para o pós-extrativismo isto é para uma economia que não dependesse tanto da extracção dos bens dos recursos naturais que afinal não têm nenhuma transformação, a maior parte do lucro vai para o estrangeiro e que deixam o país mais pobre e as populações mais desamparadas no futuro, quando este boom desaparecer, não é?

Leonardo Boff – Eu acho Boaventura que você tem plena razão, agora há um facto que de certa maneira é novo na consciência colectiva e dos próprios capitalistas que nós encostamos nos limites da terra, nos damos conta de que a terra é pequena, finita e uma terra pequena finita não tolera um projecto infinito de desenvolvimento então para mim a grande crise que se vai estabelecer daqui por diante é a incapacidade do sistema se auto-reproduzir que natureza devastada, ocupamos 83% de todo o planeta, os 17% que não ocupamos é o Evereste, são as grandes montanhas, florestas tropicais centrais, então eu acho que a percepção que isso para mim é nova, o pressuposto, por exemplo na grande crise de 29/30 era que a terra está aí abundante podemos tirar recursos quando queremos, hoje esse pressuposto é falso, a solução tem que tomar em consideração o momento ecológico, porque a terra não aguenta, ela não tem mais os recursos, não só renováveis, e chegamos a um ponto que a base físico-químico da terra se transformou e se revela no aquecimento, aquecimento global. Então se isso não for tomado em consideração efectivamente o sistema nos leva ao abismo.

Boaventura de Sousa Santos – Claro.

Leonardo Boff – E pode implicar o fim da espécie.

Boaventura de Sousa Santos – Eu pergunto-me se a democracia pode subsistir num tempo em que o capital financeiro tem uma acumulação totalmente infinita, totalmente desregulado com uma dimensão de desigualdade social de tal maneira repugnante que os nossos governantes continuam perfeitamente insensíveis, quer dizer, nós dantes eramos muito mais sensíveis a ver indivíduos super ricos com aquela prosperidade, por isso é que eu não gosto muito do conceito da prosperidade, com aquela ostentação também do luxo etc., hoje isso transforma-se num mito, num glamour, num encanto, se calhar todos nós gostaríamos de ter aquele estilo de vida, daqueles que vão para Miami, daqueles que pensam sobretudo neste super consumismo, não acha que teremos que fazer alguma desobediência civil?

Leonardo Boff- Nós vamos ao encontro de situações de excepção onde constituições poderes estabelecidos, são totalmente incapazes de gerenciar, não sei se é a palavra correcta, gerenciar uma crise de proporções planetárias, para mim foi muito iluminador um livro de Jacques Attali que era o grande assessor de Mitterrand, ["Breve história do futuro"] e pinta três cenários que acho interessantes, o super-império que está em decadência mas está ali, será seguido pela supra-violência então espécie de balcanização do mundo e nós estamos assistindo de uma certa maneira, guerras regionais, por razões económicas, por razões de como no norte da África por razões politicas de liberdades, etc. que elas vão ganhando escala até ao ponto de utilizar armas de destruição em massa, químicas eventualmente as pequenas bombas atómicas são pastazinhas que destroem toda uma Petrópolis, mas não é muito destrutiva mas torna toda a região por uns 30 anos inabitável devido à radiação. Ele disse no momento desse em que a humanidade vai-se dar conta que ela pode se autodestruir nessa escalada, ela vai criar o terceiro cenário da superdemocracia, e se da democracia planetária uma gestão colectiva não centralizada mas uma gestão co-partida desse planeta com os recursos que ele tem e com isso devemos satisfazer e dar os mínimos a todos, mas não só a todos mas a toda comunidade de vida, plantas, animais outros seres, organismos vivos e aí seria digamos a grande transição para a humanidade, embora ele termine dizendo, “eu que sou agnóstico e ateu preciso rezar para que isso aconteça, porque não há nenhuma segurança que isso aconteça.”

Boaventura de Sousa Santos – O problema é que para muita gente, a mudança é que é a escuridão, isto é, a gente passou de um período em que o socialismo era nitidamente o grande horizonte de transformação e da utopia, no tempo da Rosa Luxemburgo a gente começa a fazer uma abertura entre socialismo ou barbárie, portanto a Rosa Luxemburgo vê que afinal a transformação do mundo tanto pode ir numa direcção de catástrofe, que será barbárie, ou então o socialismo, mas é preciso tomar muita coragem para que não seja a barbárie, o que hoje se torna para mim, mais preocupante é que o cenário do socialismo desapareceu pelo menos momentaneamente, embora falemos do socialismo do século XXI, ele parece demasiado com o socialismo do século XX, não tem realmente grande, grande credibilidade e a barbárie avança em meu entender sob que forma, sob a forma de que não há alternativa, portanto é mais capitalismo, e mais capitalismo, e mais exploração.

Boaventura de Sousa Santos – Na sociologia tivemos sempre alguma resistência ao conceito do povo porquê? Porque bem a ideia de que afinal quem é o povo, não tendo uma dimensão transcendental o povo de Deus ou o que seja, o povo são os opressores e os oprimidos, por outro lado a ideia do povo esteve muito vinculada às ideias do populismo, dos líderes carismáticos, da denegação no fundo da política partidária e da democracia. No entanto é um conceito absolutamente fundamental na teologia e sobretudo na teologia da libertação, porque o povo? Quem é para si o povo? Não são todos os brasileiros ou são?

Leonardo Boff – Foi um tema que teólogos da libertação, como sociólogos, politólogos trabalhamos nos esforçamos por limpar essa categoria fazer um instrumento de conhecimento porque primeiro que a teologia da América Latina na derivação do Vaticano segundo coloca como a definição real da igreja o povo de Deus, quer dizer está o povo ali, gentes etc. mas é um conceito altamente ideológico desde o nazismo o Volksrepublik, Volkskirche etc. Então tirar essa conotação. E nós chegamos a isto que povo na verdade não existe, povo é uma criação, é criado a partir dos pobres e marginalizados que se organizam e cria sua rede de conexões a partir das quais eles laboram um projecto de vida, projecto de visão de mundo, de sociedade etc., e na medida em que eles estabelecem suas redes vai nascendo um povo com categoria sociológica. Então em termos de Brasil o povo brasileiro está nascendo ainda, não existe.

Boaventura de Sousa Santos – Mas se o povo é algo mais que partidos, organizações não-governamentais e movimentos sociais, nós estamos de volta ao conceito da multitude do Espinoza que depois foi recuperado pelo Antonio Negri e no fundo na ideia de que será essas massas, digamos assim, que são despossuídas que de alguma maneira podem trazer a revolução, já não são os operários, são todos, são os desempregados, são os oprimidos. Eu acho que sim, que há uma multiplicidade de mecanismos de opressão que hoje são muito mais visíveis no mundo quando antes se via sobretudo a opressão que nós chamamos exploração que é do capital de trabalho hoje há outras formas que se tornaram muito visíveis mas todas elas convocam formas de organização, precisamos do conceito do povo além do conceito dos movimentos sociais, das organizações não-governamentais, dos partidos populares, porque é que é o conceito de povo? É um conceito que parece inerte, no seu conceito na maneira como o diz não é de maneira nenhuma ninguém é o povo como um dasein, como um ser aí, é um ser que se cria, é um selbstsein, é alguma coisa que se constrói a partir de si mesmo de uma certa autenticidade, mas este selbstsein não pode levar à ideia dum Volksgeist e de uma Volksgeschickte e do etc., que possa de alguma maneira travestir ou perverter-se numa forma de autoritarismo. Eu tenho um pouco de medo do conceito de povo, não tenho medo do povo, mas tenho medo do conceito do povo.

Leonardo Boff – Agora se você remete continuamente à fonte de onde ele nasce que é a comunidade que ela funciona íntegra, resolve os conflitos internamente, encontra vias de articulação com outros que não são povo, porque não são organizados, acho que o grande desafio que nós colocávamos como a igreja povo se articula com aqueles que não são povo, que estão lá em baixo, desarticulados e tudo. A tendência comum é seleccionar para cima com a sociedade organizada, com cidadania e esquecer lá em baixo, o desafio dos cristãos é tentar não é a transcendência é a transdescendência, descer mais a fundo e resgatar esses que são…

Boaventura de Sousa Santos – Mas a classe dominante está organizada portanto é povo.

Leonardo Boff – É mas ela não tem comunidade, ela…

Boaventura de Sousa Santos – Não tem comunidade?

Leonardo Boff – Eu acho que não.

Boaventura de Sousa Santos – Não?

Leonardo Boff – Comunidade, exploração…

Boaventura de Sousa Santos – Aqueles clubes de golf, aqueles clubes privados que eles têm.

Leonardo Boff – Eu acho que mafia.

Boaventura de Sousa Santos – Os condomínios.

Leonardo Boff – É mas não é comunidade no sentido catagénese, tradição sociológica, aquele sentimento de pertença, interesses colectivos, projecto

Boaventura de Sousa Santos – Tinha uma memória, uma história.

Leonardo Boff – Uma memória uma historia, não lá é uma congregação em função do objectivo até perverso.

Boaventura de Sousa Santos – O intelectual neste momento qual é a nossa posição, é um saber militante, sempre foi um pensamento crítico, sempre foi um saber militante, mas durante muito tempo, eu vivo muito essa angústia, foi um saber também de vanguarda, e realmente a minha aspiração é ser um ignorante ilustrado, um ignorante douto digamos assim, e é isso que penso que nós podemos ter para isso, venho com o conceito de ecologia dos saberes, da tradução intercultural porque mostra os limites do pensamento e de cada um dos paradigmas em que a gente trabalha e a necessidade de integrar diferentes saberes porque há bocado referi o grande progresso de ir à lua, eu acho que sim se a gente quer ir lua precisa da ciência, mas se quer preservar a biodiversidade precisa do conhecimento indígena, do conhecimento camponês, diferentes conhecimentos para diferentes objectivos e portanto nós temos que estar muito seguros desse objectivo. Qual é o nosso papel? Não somos propriamente, não é o intelectual orgânico de Gramsci, eu digo do intelectual de retaguarda, como é que o Leonardo Boff se vê a si mesmo nesta circunstância como intelectual e como activista no fundo também que é.

Leonardo Boff – É eu vejo sob dois aspectos Boaventura eu acho que você a minha perspectiva talvez nem formule assim mas você acha que age dessa forma, eu acho que o papel do intelectual e eu me entendo um pouco assim na minha actividade é alguém que assume uma responsabilidade ética, então a ética é muito importante, como a ética de valores, a ética de negação, daquilo que está sendo destruído em termos da vida, das relações entre as pessoas, comunidades e povos, então alguém que se coloca ao serviço da vida e isso como valor ético, não uma coisa da biologia nada disso, como valor ético e no sentido clássico dos gregos, quando falo em ethos eles pensam a casa, a casa não edifício casa como aquela parte da natureza que eu reservo para poder habitar nela com sentido, de me relacionar com os demais, então o sentido existencial de casa, eu acho que o intelectual tem que ser um intelectual seminal, na minha compreensão de suscitar esses sentimentos que são da radicalidade humana nos seus ouvintes, não que eles se proponham agora vou suscitar, porque esse não suscita ele tem que suscitar de maneira de articular o discurso de se relacionar de criar no fundo uma esperança contra todas as esperanças e com efeito tem que ser um acrescentamento de entusiasmo da vontade de viver e vale a pena viver e vamos à frente, embora saiba que a realidade ruim e aí bloca muito genial quando diz “o génese está no fim não está no começo”.

Boaventura de Sousa Santos – Não posso deixar de perder esta oportunidade de lhe dizer o Leonardo vai muitas vezes à Europa, fala com os europeus aqueles que o convidam mas há muitas Europas e hoje cada vez mais, e há muito europeu que pensa que está a ser excluído da tal europeidade. São estes jovens, 50% no desemprego em Espanha, 40% em Portugal, 50% na Grécia, gente sem nenhuma perspectiva de emprego ou de uma vida digna, de trabalho precário etc., se o Leonardo se pudesse dirigir a eles que mensagem lhes daria, o que é que gostaria que hoje na Europa os que dominam e também aqueles que estão indignados na rua, porque eu sei que o Leonardo sabe e é uma das suas grandes características é saber falar aos governantes no sentido de lhes mostrar a sua má consciência e dar esperança aqueles que são oprimidos por eles para a Europa neste momento que passa por esta crise em que ela necessita de aprender de outras experiências do mundo, que é que acha que a Europa está a não aprender e que devia aprender com as experiencias que o Leonardo tem vivido por este continente e por este mundo fora, o que é que acha que seria mais importante eles saberem de si mesmo que não gostem, que não batam palmas no fim, porque o Leonardo lhe diz certas verdades que eles talvez não gostassem de ouvir.

Leonardo Boff – Eu acho que essa, às vezes quando o desafio é muito grande a gente cala e medita, mas é sempre possível dizer umas palavras. Eu acho que especialmente os jovens não devem nunca renunciar a sonhos, tem que continuar sonhando que a fonte a sua energia para protestar, para não aceitar, para se recusar a certo tipo de sociedade e não querer entrar nela, então isso só é possível mediante um sonho generoso de que é possível outro tipo de convivência, outro tipo de organização social que não seja essa que está afundando e está produzindo um oceano de sofrimento nas famílias, nos suicídios, no desemprego que a gente fala no desemprego, mas por detrás do desespero das famílias. E termino com o testemunho de um jornalista alemão que me visitou e cobriu os grandes lugares de conflito do mundo e quis conhecer uma festa popular, e eu levei numa comunidade lá do Rio de Janeiro de onde era uma sexta-feira de festa dali, de churrasquinho, de cerveja todo mundo confraternizando, apareceu o alemão todo o mundo ofereceu pra beber, ele sentou ao lado e começou a chorar e disse “olha eu estou pedindo a Deus que se o dia que eu morrer, quero morrer assim, esse povo confraternizando, se reconhecendo”, alemão sabia três palavras de português, como fala bem português convidado a dançar samba, convidado a entrar, isso é fraternidade, isso é humanidade eu queria o mundo assim, e quando morrer quero morrer no meio desse porque aqui é o começo do mundo.

Boaventura de Sousa Santos – Maravilha, acho que é isso mesmo. Estamos concluídos. Terminamos acho que foi uma conversa maravilhosa, acho que agora vocês podem tirar os planos onde quiserem e amanhã….