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Maria Irene Ramalho

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Cânone

Maria Irene Ramalho
Publicado em 2023-08-19

O vocábulo do grego antigo de que deriva a nossa palavra “cânone” – κανών – designava inicialmente um pauzito, ou uma tirinha de madeira, para fazer medições, ou seja, uma simples régua. Por inferência, adquiriu rapidamente o sentido de “regra”, que foi justamente o que o seu derivado latino – canon – passou a significar. Ao longo dos séculos, o termo viria a ganhar várias outras acepções, que ainda hoje se mantêm, em áreas diversas do saber e da cultura. Por exemplo, “norma”, “bitola”, “modelo”, “padrão”, “exemplo”, “lei”. A acepção que aqui mais nos interessa é esta última, que é também a mais antiga, e surge no mundo judaico-cristão no âmbito da religião e do sagrado.


Os Livros Sagrados dos povos hebraicos estão na base do primeiro cânone como tal reconhecido, embora o termo só venha a ser usado muito mais tarde. É de os livros – ta biblia, no grego da tradução dos primeiros séculos da era cristã conhecida como Septuaginta – que deriva o feminino singular bíblia. A Sagrada Escritura, ou Bíblia, incluía apenas os textos do chamado Velho Testamento considerados de inspiração divina pelas autoridades religiosas, as quais detinham ainda o poder de os interpretar. Mais tarde, os Cristãos acrescentaram o chamado Novo Testamento: os quatro Evangelhos, os Actos do Apóstolos, as Epístolas e o Apocalipse. É a Bíblia judaico-cristã, tal como a conhecemos hoje, nas diferentes configurações das denominações que a adoptam, que constitui o primeiro cânone de que há memória. Se os textos excluídos desse cânone por não autorizados pelos poderes religiosos – os chamados Livros Apócrifos – podem ou não ser ainda considerados parte do cânone, é uma questão controversa.


Na Alta Idade Média, a Igreja Católica definiu as regras eclesiásticas que constituem ainda hoje o Direito Canónico, distinto da Jurisprudência (Lat. lex/leges). Mais tarde, outras Igrejas seguiram-lhe o exemplo. O conceito de “cânone” passou oficialmente a designar não só os textos que o poder eclesiástico reconhece como autênticos, mas também as normas que presidem aos comportamentos autorizados da comunidade religiosa em causa. Na Crónica de el Rei D. Pedro (c. 1434), Fernão Lopes fala do “rigor dos santos canones” que proíbem “a copulla do matrimonial ajuntamento” entre parentes.


Cânone e poder andam sempre de mãos dadas, sendo que o poder de incluir ou excluir se alicerça também na tradição e na convenção. A comunidade segue as regras, não apenas por imposição do poder, mas por via do peso das convenções tradicionais. Quando na investigação em Ciências Humanas e Sociais se invoca hoje “o cânone”, seja para o exaltar ou para o contestar, o que está em causa é o acervo de objectos literários, artísticos, teóricos, científicos ou ideológicos que se prefiguram como dominantes e de conhecimento obrigatório numa determinada comunidade académica ou artística. O cânone depende dos contextos do poder (universidades, autores, críticos, editoras) e está, por isso, em constante mutação. Na literatura ocidental, que é onde o conceito de “cânone” se tornou, por assim dizer, “canónico”, o termo começou por identificar o classicismo greco-latino (Homero, Vergílio) para gradualmente admitir textos vernáculos (Dante, Camões). Acontece até que os gestos mais radicais de contestação são muitas vezes absorvidos pelo cânone. Quando o ultra-contestário Filippo Tommaso Marinetti foi admitido na Academia Italiana em 1929, Fernando Pessoa, na pessoa de Álvaro de Campos, não resistiu a consagrar-lhe a canonização no poema intitulado “Marinetti Académico” (“Lá chegam todos...”).


No século passado, o grande teórico e crítico literário norte-americano, Harold Bloom, teve a presunção, e o poder que lhe conferia a sua autoridade académica, de identificar um “cânone ocidental”. Com base no gosto pessoal do autor, no seu imenso saber e na sua argúcia como leitor, The Western Canon (1994) acabou por ser, como não podia deixar de ser, e de resto como todos os cânones, um cânone cheio de exclusões – de língua, classe, raça, sexo – e logo mesmo enquanto “ocidental”. De “cânones” é, pois, preferível falar o menos possível, e com imensa cautela. Pouco menos de dez anos depois de ter presumido identificar os “livros e as escolas dos tempos”, Bloom publicou mais um livro, Genius (2002), em que, mais modestamente, discute apenas os 100 “génios exemplares” da sua predilecção, entre os quais se contam agora 12 escritoras (em vez das 4 do livro anterior) e um autor afro-americano: Ralph Ellison.

 

Referências


Bíblia. Tradução do grego, apresentação e notas de Frederico Lourenço. Lisboa: Quetzal, 2016-
Bloom, Harold. The Western Canon: The Books and Schools of the Ages. New York: Harcourt Brace, 1994
Bloom, Harold. Genius: A Mosaic of One Hundred Exemplary Minds. New York: Warner Books, 2002
Lauter, Paul. Canons and Contexts. New York: Oxford University Press, 1991
Lopes, Fernão. Crónica de El-Rei D. Pedro. Lisboa: Escriptório, 1895

 

 

Como citar

Ramalho, Maria Irene (2019), "Cânone", Dicionário Alice. Consultado a 28.04.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=43852. ISBN: 978-989-8847-08-9