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“A Europa é uma prisão a céu aberto” – entrevista a Mamadou Ba

À conversa com Mamadou Ba, activista do Movimento SOS Racismo, procurámos perceber as lógicas históricas que conduziram à génese e persistência da Europa como Fortaleza. A fronteira, sempre vigiada e tantas vezes intransponível está assente, de acordo com Mamadou, “nos limites da capacidade geo-estratégica da Europa” e, como tal, é isso que “temos que interrogar, que não pode existir!”

Jornal Mapa
7 Nov 2015

Nota Biográfica: Mamadou Ba nasceu em Kolda, em 1974, e vive em Lisboa desde 1997. É licenciado em Língua e Cultura Portuguesa e membro do Movimento SOS Racismo.

R. Alves: Há um genocídio em curso às portas da Europa. Podes dizer-nos como é que tudo isto começou, fazendo uma espécie de arqueologia da Europa Fortaleza?
Mamadou Ba: Eu acho que nós podemos dizer, de uma forma genérica, que as fronteiras da Europa – fictícias, políticas e geográficas – se tornaram cemitérios a partir do momento em que a Europa se instalou numa situação de revanche histórica contra os países periféricos, nomeadamente as suas antigas colónias. Já havia mortes na década de setenta, eram poucas e não eram muito publicitadas, porque eram mais ou menos aventureiros que tentavam chegar à Europa através do Estreito de Gibraltar. Na altura, havia uma política de recrutamento de trabalhadores, ou seja, o acerto entre o que deveria haver de relação colonial entre a Europa e o resto do mundo era feito indo buscar trabalhadores em massa para trazer para alguns países da Europa, logo a seguir aos Trinta Gloriosos [período entre 1945 a 1975] e onde houve uma industrialização forte (i.e. França, Itália, Bélgica, Alemanha). A Europa reciclou a sua forma de trabalho escravo indo buscar, através de acordos bilaterais, trabalhadores em massa. Hoje, a ideia que nós temos é essa narrativa de que as pessoas vêm em massa porque decidiram vir em massa. Não! Alguém criou essa ideia de que havia uma possibilidade de as pessoas virem. Eu sei que para alguns esta comparação é muito forçada, mas ela tem alguma lógica histórica: o que a Europa fez logo a seguir às independências foi o que o faziam os navios negreiros quando iam buscar escravos. Portanto, a lógica da economia da morte, que resulta dessa massificação da imigração, foi uma coisa planeada e planificada por uma necessidade económica capitalista. Depois, quando a Europa começa a entrar numa fase de algum refluxo económico e, sobretudo, quando começou a perceber que já não havia possibilidade de controlar essas “manadas” – tal como no tempo colonial, ou no tempo da escravatura -, que as pessoas podiam ter alguma mobilidade dentro da prisão que era o seu estatuto e a sua condição de imigrantes, isso começou a criar problemas.

Em finais de setenta, início de oitenta, depois de ter desarticulado também as economias dos países de origem, através das políticas de ajustamento estruturais, decidiu: “Olha, nós vamos também, tal como liberalizamos a economia, vamos liberalizar a mobilidade”, o que implica fazer o quê? Nós criamos mecanismos de filtro, deixamos entrar quando quisermos, como quisermos para fazer duas pressões ao mesmo tempo: pressionar os países de origem – na gestão das saídas e entradas dos seus cidadãos – e pressionar a nossa classe trabalhadora. Deixando sempre entreaberta a hipótese de que pode vir uma ameaça de fora e, claro, que a Europa também está instalada na sua genética atitude imperialista. Ela acha que a única forma de poder ter acesso a recursos para alimentar a sua máquina económica é perturbar e destabilizar os países mais periféricos e a partir daí temos a Europa a fazer guerras por procuração no Continente Africano, no Médio Oriente e também no Extremo Oriente, coisa que não se fala muito nas narrativas. Tirando a Inglaterra, não temos nenhuma discussão sobre o que acontece, por exemplo, no Extremo Oriente (Malásia, Singapura). E há ali fluxos danados de imigrantes que resultam da herança da política imperialista britânica, tal como no Corno de África e no Próximo ou no Médio Oriente (Somália, Líbano). A própria conivência da Europa com o Estado de apartheid de Israel também cria fluxos migratórios forçados porque cria tensões em que as pessoas se vêem obrigadas a fugir para se salvarem. Depois, por um ajuste histórico de posição, logo a seguir à queda do muro de Berlim assistimos à implosão de parte importante dos países que eram limítrofes da Europa dita Ocidental. Com a guerra dos Balcãs isso foi uma forma que a Europa encontrou de arranjar uma desculpa para dizer: “Nós a partir de agora não podemos receber toda a gente”. Depois a Europa, do ponto de vista cultural, massificou uma forma de estar no mundo, ou seja, criou uma certa hegemonia civilizacional e cultural através da massificação da televisão e contou nisso com a conivência dos seus vassalos. Os poderes políticos desses países – que foram instalados, a maior parte das vezes, pela Europa ou por interesses europeus – tudo fizeram para criar uma condição de necessidade permanente das populações para aspirarem a ter uma coisa, um modelo de sociedade que não é o delas. E onde é que podem ir buscá-lo? É na Europa. Tal como a Europa fez quando empreendeu o imperialismo e o colonialismo, criou-se a ideia do El Dourado ao contrário.

R. Alves: O que é que achas que tem de colonial esta relação?
Mamadou Ba: A continuidade colonial está patente, primeiro, na própria gestão das relações bilaterais entre a Europa, ou seja, a forma como a Europa decide expandir e retrair a fronteira a seu bel-prazer, consoante o xadrez geopolítico. A Europa decide, às tantas, que pode ter políticas ou programas de gestão das suas fronteiras que vão além fronteira: os acordos bilaterais de admissão passiva de imigrantes, a externalização dos centros de detenção, a militarização e os dispositivos militares que a Europa usa são disso uma prova cabal. Por exemplo, o Mare Nostrum, um resquício fascista que tinha a pretensão de que a Europa podia controlar toda a sua fronteira marítima e decidia quem era nosso e quem não era nosso, quem era susceptível de ser ou não salvo. Isto é um instrumento de gestão geopolítica da fronteira. Quando a Europa decidiu que já não queria fazer nem a montante nem a jusante esta vigilância fronteiriça acabou com o Mare Nostrum e criou o Triton, que o que diz, basicamente, é: “Os nossos vizinhos são quase os nossos inimigos, portanto nós não queremos que vocês venham morrer cá, morram lá! O que vamos fazer é: vamos utilizar esses instrumentos para fazer com que as mortes sejam menos visíveis aqui às portas da Europa e que sejam mais escondidas”.

R. Alves: De quando é que datam estes programas?
Mamadou Ba: A Cimeira de Sevilha (2001) legitimou a ideia de que a imigração já não era um direito mas uma mercadoria. Um Estado podia decidir, quando lhe apetecesse, aceitar ou não o embrulho. Essa era a filosofia. E para dar corpo a isso, inseres um instrumento repressivo e então criou-se a Frontex (2004). Depois tinhas que dar um programa político à Frontex, porque a Frontex é um instrumento militar mas o seu programa político era o Mare Nostrum (2006/2007). Depois da tragédia de Lampedusa (2013), a Europa disse: “Não! Isto é demasiado impactante na nossa opinião pública” – os cadáveres a boiarem às portas da Europa – “Isto agora tem que acabar! Eles que morram, morram em alto mar… ou morram lá antes dechegarem cá!”. Então criou o Triton, uma forma de simplesmente evitar que as mortes sejam visíveis aqui na Europa. O Mare Nostrum tinha uma componente repressiva mas tinha uma componente de salvamento porque era inspirado no direito marinho medieval em que os pescadores deviam, por um código de conduta, salvar pessoas que estivessem em perigo em alto mar, independentemente da sua nacionalidade. Tudo isso tem um fundo imperialista sabemo-lo, mas também tem uma parte de valor. Perante o perigo, salvar a vida, depois acertar contas. O Triton é o contrário: quanto menos for visível a desgraça, mais podemos tranquilizar as nossas consciências e, sobretudo, as consciências da nossa opinião pública. Aliás, reduziram os meios de salvamento, aumentaram os meios de vigilância, mas à distância, e introduziram uma coisa: o Triton tem previsto nos seus enquadramentos gerais, por exemplo, a possibilidade de haver bombardeamentos de barcos em países de origem dos imigrantes, usando não apenas a Frontex mas também a NATO. Isto chama-se colonialismo belicista. Foi assim que a Europa conquistou e dominou o mundo, com acções de razia e de guerra e esse é o conceito que a Europa vai buscar de novo para aplicar na questão da gestão da imigração.

Depois, logicamente, há a questão da escravatura. Transformar os imigrantes em números é tal e qual o que se fazia com os escravos nas caves dos barcos, que eram “gado”, eram coisas, objectos, não eram pessoas. E aqui nós transmutamos um bocadinho a sofisticação da negação da humanidade, numerizando, quantificando e retirando completamente a hipótese de podermos dizer que essa pessoa é uma pessoa, que tinha um nome e uma história.

R. Alves: Por que é que achas que só agora este fenómeno atingiu visibilidade mediática? Achas que tal marca uma ruptura real no debate público?
Mamadou Ba: Creio que não marca. Eu acho que a Europa tem fases no debate sobre a imigração mas o único denominador comum da alteração táctica do debate é aquela que se inscreve sempre numa dimensão colonial, sempre. O que mudou, por exemplo – estou a fazer uma extrapolação que não tem nada a ver com isto, mas para mim está interligado. Quando se fala muito da questão da violência policial nos Estados Unidos as pessoas esquecem-se de uma coisa: a violência policial não aumentou, aumentou a capacidade de visibilidade da violência policial. O que aumentou, o que mudou na Europa é… as pessoas parece que não têm memória.

Há dez anos atrás um livro pequenino foi escrito chamado O livro negro de Ceuta e Melilla. Na altura, todos os dias havia na televisão imagens aterradoras de pessoas encalhadas nas rochas do Estreito de Gibraltar porque morriam. Ainda continuam a morrer mas a Europa tinha, na altura, necessidade de reconfigurar a sua relação geoestratégica, sobretudo a sua relação Euro-Atlântica, ou seja, com o centro do capital, com os Estados Unidos e por isso preocupou-se muito com a sua fronteira sul. O primeiro muro que nós tivemos na década de 90 foi precisamente Ceuta e Melilla. Fez-se o muro e a história foi-se repetindo aos poucos. Eu acho que este truque político de gestão da retórica pública sobre as migrações tem a ver com isto mesmo: como é que a Europa sempre tenta reciclar o seu discurso perante o outro, como é que tenta justificar ou legitimar a sua dominação? Como é que controla, como é que tem que controlar outros povos? Aí o discurso sobre imigração, precisamente, acompanha essa táctica de retórica política. Consoante os momentos, consoante o debate interno que se trava-se a Europa guina um bocadinho mais à direita ou um bocadinho mais à esquerda, se a Europa se põe, ela própria, em confronto com as contradições internas que tem – o que é que isso representa depois perante a vinda de outras pessoas ou o confronto com outras culturas? Então a Europa vai automaticamente inventar um novo discurso sobre os outros que chegam aqui e eu acho que isto tudo se cruza com a dita “crise”, agora, de refugiados. Todas as pessoas dizem uma frase que é das mais cínicas que há: “O que está a acontecer é uma tragédia, não podemos ficar indiferentes! Mas cuidado, nós temos que ser generosos e muito cuidadosos! Temos que ser muito, muito cautelosos porque nós não sabemos o tempo que isso vai levar! Não sabemos quantificar o número de pessoas que nos vão procurar. Portanto, não sabemos temporalmente nem espacialmente a dimensão desse fenómeno. O que isso representa, por exemplo, para o nosso modelo social. Porque se for longo, a ameaça é maior porque pode ter a hipótese de contágio social, cultural e civilizacional”. Agora, o medo deles é exactamente esse: “quanto tempo é que isso vai demorar? E quantas são as pessoas que virão aqui?”.

R. Alves: Pedia-te agora que escolhesses dois ou três momentos marcantes para se pensar a forma como a Europa olha para estas questões e tem agido sobre elas ao longo do tempo.
Mamadou Ba: Eu acho que nós podíamos escolher três momentos, na minha opinião, muito significativos para a mudança de paradigma das políticas migratórias e fazer a sua ligação com a política económica e com o capitalismo. Eu escolheria a Cimeira de Sevilha (2001), a Cimeira Europa-África de Lisboa (2007) e depois o momento actual, ou seja, a Cimeira de Bruxelas, logo a seguir à tragédia de Lampedusa, a última.
Eu acho que são três momentos que estão interligados. A Cimeira de Sevilha foi logo a seguir aos atentados de 11 de Setembro e tem que ver com dois momentos importantes de debate ideológico. Tinham saído dois grandes livros (no sentido da polémica), o de Fukuyama, o Fim da História, e o de Samuel Huntington, O Choque das Civilizações, e em que ambos, de uma forma distinta (embora ambas neoconservadoras), tinham uma grande necessidade de fazer uma revanche histórica sobre a Mãe, a Europa. Porque, segundo os autores, a Europa que tinha criado a ideia de Ocidente estava falida e eles acharam que os atentados foram a prova de que a Europa não tinha conseguido resolver, de todo, a questão do Universalismo porque os jovens que fizeram os atentados formaram-se e viviam na Europa. Ganharam uma certa modernidade mas que não serviu para “proteger os valores mais sagrados” do Ocidente. Então, era óbvio que, mais do que o imperialismo económico, era preciso um imperialismo cultural. Entre isto qual era um dos eixos mais importantes de controlar para o Ocidente? Era a questão migratória. Como é que se geria o contacto das pessoas que eram diferentes culturalmente do Ocidente? E eles, cada um tinha a sua solução, e a Europa também disse, pressionada pelos Estados Unidos: “Espera aí! Nós estamos em perigo do ponto de vista de identidade. O que é que representa isto? É a mobilidade das pessoas… essas pessoas diferentes que vêm cá, como já não se conseguem fazer ser iguais a nós, temos que arranjar forma de endurecer, de os pôr na linha”. Na sequência da Cimeira de Sevilha criou-se um fundo através da Estratégia de Barcelona. Um fundo de 500 mil milhões que era para gerir a imigração. E então a gestão desse fundo era basicamente fazer o quê? Comprar as lideranças na fronteira do Mediterrâneo com a Europa para eles próprios exercerem a repressão sobre a imigração.

R. Alves: Era um fundo que visava a externalização das fronteiras?
Mamadou Ba: Exacto. Mas era, sobretudo, para apetrechar a Europa de material de vigilância e de políticas repressivas. E a partir daí o que é que a Europa decide? Aquela ideia de que nós podemos transformar o imigrante num objecto: “a gente apanha-te nesta fronteira, levamos-te para não sei onde”. E aí os gajos aumentaram o orçamento para os Centros de Detenção na Europa, legitimaram as novas tecnologias para os novos Centros de Detenções, nomeadamente Málaga, que era um dos maiores. Tudo isto aconteceu nessa Cimeira de 2001 e foi uma mudança brutal no paradigma. E ali fizeram uma coisa nova que não se fazia desde os Anos 50, na Suíça, que foi sazonalizar o estatuto jurídico dos imigrantes, que é dizer: “Meu amigo tu estás cá enquanto houver job. São dois meses, são dois meses. São três, são três. Tu… amanha-te!”. E começaram com dois países a fazer isso: Estónia e Portugal. Em Portugal nós tivemos as Autorizações de Permanência (AP). Começaram assim e depois foram crescendo outras coisas, até termos a famosa Cimeira da Haia (2004), onde nasce então a Frontex. Já havia umas coisinhas tenebrosas sobre a Frontex como, por exemplo, a Fast-track – que era um dispositivo de vários inspectores e militares que faziam patrulhas com meios da NATO, de vez em quando e ainda não tínhamos a Frontex como a conhecemos hoje. Tinhas e tens a EUROPOL (Serviço Europeu de Polícia), o SIS (Sistema integrado de Informação de Schengen), o EURODAC (Base de Dados Biométricos e outros), o VIS (Sistema de Informação de Visas), entre outros.

A Cimeira Europa-África de Lisboa (2007) foi um momento estruturante na definição das políticas migratórias. Porquê? Eles alteraram os eixos que definiam as políticas migratórias entre Europa e África e alguns dos eixos. Para além da questão económica e das matérias primas eles colocaram a imigração dentro dos eixos estratégicos para a consolidação dos projectos de cooperação bilateral. Na minha opinião eles conseguiram uma coisa que durante muito tempo tentaram fazer e não tinham conseguido, que era convencer os países africanos, os países ditos emissores de imigrantes, de que era importante mudar o conceito e o entendimento de que a mobilidade era um direito. E ganharam essa batalha, porque eles conseguiram dizer a esses países: “a única forma que nós temos de garantir que vamos ter uma cooperação sã, frutífera e aceitável para nós era vocês resolverem um dos maiores problemas que nós temos nesse momento de vizinhança, é serem vocês a controlar as nossas fronteiras a partir dos vossos países”. Isto implicava então nós fazermos acordos, por exemplo, de importação de mão-de-obra. O que eu chamo, para além de mercantilização, uma coisificação dos migrantes. Os imigrantes passam a ser mercadoria para importar ou exportar consoante der jeito aos círculos económicos ou políticos e África podia, tal como vende amendoins e cacau, disponibilizar um número pedido dos seus cidadãos, ou não, à Europa para virem trabalhar sazonalmente. Isso é uma mudança de paradigma brutal. E passou a determinar claramente que um dos capítulos dos APE (Acordos de Parceria Económica) era o controlo dos fluxos migratórios. E na minha opinião, o que determinará dali para a frente toda a política migratória será exactamente este acordo. A partir daí a Europa passa a ter um poder que nunca tinha tido antes: definir a montante e a jusante a natureza política do sujeito emigrante, não é? Que não era um sujeito portador de direitos inerentes à sua condição de ser humano mas simplesmente um produto a que a Europa podia atribuir, ou não, um estatuto. A maior parte das vezes era um estatuto precário, simplesmente. Isto foi uma derrota dos países e foi uma derrota da ideia da liberdade de circulação porque ela sai da esfera dos direitos e vai para a esfera da economia. Isto é uma mudança estrutural para as políticas migratórias e daí é que se vê claramente que tudo aquilo que se seguiu de então para cá estava numa lógica economicista. Mesmo quando a Europa, por exemplo, criou os tais programas (Haia e Estocolmo) e todos os programas que se seguiram, estavam todos numa lógica economicista, todos eles. Isto mais tarde traduz-se também no conhecido Pacto Sarkozy, em que há duas coisas que decididamente morreram. Por um lado, os processos de regularização extraordinária de imigrantes. A Europa decidiu que jamais os imigrantes podem ter uma condição regular ou um estatuto jurídico regular e foi proibido aos Estados procederem a regularizações. Porquê? Porque, tal como se tinha visto com a Cimeira de Lisboa, as regularizações eram um chamariz e, portanto, o que era importante era regularizar a relação da Europa com os países emissores de imigrantes. Volto a dizer, é a expressão que está nos documentos, isso diz tudo: os imigrantes eram emitidos, eram coisas, não eram pessoas. Os países emissores de imigrantes é que deviam decidir com a Europa quantas pessoas podiam vir para a Europa na base de um estatuto regular. Não eram os emigrantes, eles próprios sujeitos independentes e livres de ter uma relação jurídica estável e regular com um Estado qualquer em que escolhessem viver. Este pacto não só gorou qualquer hipótese de haver uma iniciativa pública de se responder aos problemas com que se confrontam os imigrantes, nomeadamente, terem uma relação jurídica com o Estado onde vivem. Além do mais, fez uma outra coisa que é um retrocesso civilizacional comparável somente com aquilo que foi a Alemanha nazi do ponto de vista jurídico, que é haver a hipótese de expulsões em massa, legalmente previstas, a chamada Directiva do Retorno (2008).
A Directiva do Retorno é fazer aquilo que a Gestapo fazia aos judeus. É olhar para as pessoas e, pelas suas características, pegar nelas e determinar que elas por serem aquilo que são, na condição em que se encontram não podem estar ali onde estão. Têm que estar noutro sítio onde alguém decida que têm que estar. E é terrível porque depois, na minha opinião, é isto que justifica todo o cinismo e hipocrisia logo a seguir à tragédia de Lampedusa, na Cimeira de 2013. Houve um cinismo atroz. Toda a gente foi lá chorar. O Papa foi lá, toda a gente foi lá. Mas a verdade é que um ano depois eles acabaram com o único dispositivo de socorro e salvamento que era capaz de responder mais ou menos à tragédia e fizeram uma coisa muito mais regressiva e retrógrada – em termos de conceito e de filosofia política – que o próprio Pacto Sarkozy, o Mos Maiorum. Em Outubro de 2014 a Europa emitiu um documento confidencial, que filtrou para fora, a lançar uma operação policial de perseguição aos imigrantes. Estava preto no branco que tinha dois objectivos: assustar e dissuadir os imigrantes de procurarem a Europa; e assustar e dissuadir os imigrantes que estão no espaço europeu em situação irregular para irem embora. O objectivo do controlo e de combate ao tráfico humano era um objectivo completamente lateral ao centro da operação. Só a definição da expressão Mos Maiorum diz tudo, em latim quer dizer “nós e os outros“. Com esta operação o que a Europa faz é transformar o imigrante num bárbaro, tal como na Idade Média. Isto vai continuando, ganhando dimensão política e vai, sobretudo, ganhando consistência programática na gestão da política migratória até que a Europa decide definitivamente acabar com o Mare Nostrum e instalar o Triton. Esse dia é um dos dias mais sinistros da nossa história contemporânea. O dia em que a Europa decidiu que as pessoas que a procuram, por todos os motivos, de sobrevivência, de querer, de sonhar ter melhores condições de vida são nossas inimigas e nós vamos utilizar os métodos convencionais dos conflitos internacionais, a guerra, contra essas pessoas. Isto é uma coisa de uma gravidade tremenda. E parece que passou assim pelos pingos da chuva, as pessoas acharam uma ideia fantasmagórica e portanto não valia a pena indignarem-se com isso. É da maior indignidade possível usar práticas, ainda por cima colonialistas e imperialistas. É a Europa sem mandato. E não se pode desvalorizar isto, não podemos desvalorizar isto. É uma das coisas mais graves que alguma vez a Europa pensou fazer, depois da conferência de Berlim.

R. Alves: Temos assistido muito a um discurso que parece tentar legitimar as operações militares centrando-se na ideia de combate ao tráfico humano. Simultaneamente, parece haver também uma fomentação da empatia na qual tens alguns discursos mais politizados mas, na sua maioria, muito são caritativos e paternalistas. Parece que há uma incapacidade de, uma vez mais, repensar qual é a génese de muitos destes movimentos que estamos a assistir hoje e as responsabilidades do Ocidente.
Mamadou Ba: Claro, basta ver quem é que se mobilizou agora e o que é que disse. O Rui Marques 1 dizia que nós temos que mostrar que a Europa é sempre melhor. Os seus valores são inquestionavelmente universais e, por isso, perante qualquer tragédia da humanidade a Europa pode dar uma lição de moral ao resto da humanidade. Ele dizia que era preciso acolher as pessoas que estão aflitas mas não podemos cair na ilusão de que temos de abrir as nossas fronteiras de forma escancarada. Ou seja, é uma abertura fechada esta do acolhimento dos refugiados. Aliás, o Rui Marques diz que as nossas forças de segurança são das mais bem preparadas da Europa para lidar com esta questão. Isto também nos diz tudo sobre a militarização, a criminalizacão da imigração, sobre a própria fortaleza ideológica em que a sociedade europeia se instalou nesta questão. Claro que isso nos leva, outra vez, ao colonialismo porque quando ele diz que isto é um desafio para a Europa, o que nos diz dentro daquela retórica, é que a Europa continua a alimentar o seu complexo de superioridade civilizacional em relação ao resto do mundo. Isto é um trauma histórico da Europa, é a conferência de Berlim em 2015 mas agora para o Médio Oriente. Isto é a Europa, é o Ocidente enquanto espaço geopolítico na sua origem. E isto é o que também determina toda a mobilização. Não é inocente toda esta comoção colectiva da Europa face à situação dos refugiados enquanto olha com indiferença a situação de racismo, precariedade e exclusão social e económica de cerca de 22 milhões de cidadãos imigrantes que vivem no seu território. Esta comoção colectiva remete para o cinismo e hipocrisia da manifestação de generosidade e solidariedade por parte dos dirigentes europeus que, enquanto perseguem e maltratam cidadãos imigrantes que vivem na Europa, fingem-se comovidos pela situação dos refugiados que nos procuram.
Há aqui alguma coisa que não bate certo. E é a mesma coisa que em Portugal, termos um país em que o próprio Estado diz afligir-se de saber que no seu seio, no seio das suas forças de segurança, brota a ideologia nazi; em que há preocupação pela infiltração de extrema-direita no Estado, como se isso fosse segredo, mas em que o racismo institucional continua a ser naturalizado e invisibilizado. Nesse mesmo país em que continuamos a ter pessoas a serem desalojadas sem nenhuma alternativa; em que a violência policial e as mortes que dela resultam não têm nenhuma consequência jurídica, nem política. Este é o país que diz que está disposto a receber pessoas que não conhece de lado nenhum, ou seja, um assombro de humanidade quando desumaniza pessoas com quem convive desde sempre no seu próprio território. Há algo de cínico e hipócrita nesta mobilização. Ela é de louvar! Sempre que as pessoas se comovem e se mobilizem, se solidarizem com a desgraça humana, é sempre de saudar. Aliás, o que não é compreensível é que esta onda de solidariedade não se sinta quotidianamente em território nacional para com quem está em circunstâncias de merecer a nossa solidariedade.
Mas isso mostra claramente o cinismo que está por trás destas conversas sobre imigração. A Europa tem uma questão cínica na sua opinião pública. Quando sente que a indignação pode atingir proporções maiores porque estamos quase no limite da indecência – porque a indiferença é uma indecência, a indiferença perante a solidariedade ao sofrimento é uma indecência – quando a Europa começa a perceber isso, os seus dirigentes desencantam soluções de engenharia social mais ou menos para dizer: “Não!”. Como disse o Rui Marques isto é um desafio à Europa para mostrarmos que somos bons e generosos e que a generosidade e a bondade como critério universal são europeus. Ou seja, remeter outra vez, culpar as vítimas de barbaridades e dizer que nós estamos aqui para vos salvar, tal como o empreendimento evangélico na altura da colonização.

R. Alves: Em que medida é que certo tipo de retórica não acaba por reificar uma ideia de centralidade da Europa no mundo, quando há tantos outros destinos que são escolhidos pelas pessoas ou que acabam por acontecer nas suas vidas. Em particular, na questão dos refugiados, lembro-me que Portugal tinha uma quota de recepção completamente irrisória, acho que era o país no espaço europeu que menos recebia, proporcionalmente.
Mamadou Ba: Era e é. Eu acho que isso nos leva ao início da nossa conversa. A Europa tentou criar uma geografia política que correspondesse a uma concepção geopolítica e estratégica da sua utilidade enquanto conjunto geográfico, que é a ideia do Ocidente. A ideia do Ocidente já não é só uma coisa geográfica, é uma coisa mais ideológica, mais cultural. E continua a achar-se, tal como quando decidiu ir colonizar o resto do mundo, realmente o centro do mundo. E achar-se sempre dona do mundo e dona das ideias sobre o mundo. E isto, que é onde reside uma parte substancial da tragédia da humanidade, hoje em dia e no passado. E portanto não interessava a realidade, interessava a realidade que ela queria construir e que queria projectar. A realidade, na verdade, é que a Europa construiu-se numa fortaleza o que faz com que esteja em negação e em contradição quando diz que está a ser a mais procurada porque as pessoas não procuram fortalezas. Portanto há já ali uma contradição ontológica: um espaço fechado não é o mais procurado, lamento.
Ao contrário do que a Europa diz, onde há mais gente a deslocar-se é noutras partes do mundo, no dito Hemisfério Sul. E há dados mais simples. O Líbano é um país pequenino, recebe cinco milhões de refugiados neste momento. O Líbano é um país com um milhão de habitantes e tem cinco milhões de refugiados neste momento. A Europa tem 200 e tal milhões de habitantes e tem 280.000 refugiados. Portanto esta retórica da invasão é só para reificar a ideia da centralidade: as pessoas procuram-nos porque somos o centro do mundo. Não se esqueçam de uma coisa, foram o centro do mundo porque tornaram periférico o resto do mundo. Empobreceram e isolaram o resto do mundo e depois mantiveram-se no centro do mundo, mas esquecem-se disso. A Europa é estruturalmente colonialista e jamais conseguiremos responder ao problema da imigração se não sairmos deste paradigma. E é por isso que toda a esquizofrenia sobre, por exemplo, esta ideia de que nós podemos ser acolhedores mas temos de ser vigilantes porque há uma ameaça à nossa cultura?! Como se a cultura europeia fosse uma coisa homogénea, como se a cultura de um país fosse homogénea e completamente estática e não o resultado de várias dinâmicas. Tudo isto mostra-nos que são tempos difíceis que estão aí a avizinharem-se. Ou a Europa faz aquilo que eu chamo a sua catarse histórica relativa ao seu lugar no mundo, ou então vamos continuar a ter o crescimento da extrema-direita como estamos a ter e as pessoas não se perguntam porquê, porque eu não papo, mas de todo, a conversa de que a extrema-direita é por causa da crise económica, eu não compro essa conversa. Acho que isso é uma forma de desresponsabilizar a narrativa sobre a identidade europeia e a sua responsabilidade histórica sobre a solução colonial com o resto do mundo. Porque, que eu saiba, na Áustria, Dinamarca, Suécia, Noruega e na Finlândia não estamos a passar momentos de austeridade e são os países na Europa onde há maior crescimento da extrema-direita. Não me venham com a história da crise, podem inventar outras retóricas, esta não cola. A Suécia foi o país que foi dito um dos mais multiculturais, um dos mais acolhedores de Imigrantes na Europa, nos últimos 40 anos. Será que de repente, os suecos acordaram fascistas?
Para mim, se nós queremos realmente olhar para a Europa, olhar para as dinâmicas, a questão da pertença e a questão da identidade, a Noruega, a Suécia e a Finlândia são barómetros para nós percebermos isso e para nós, de uma vez por todas, rebentarmos com a ideia de que realmente nós somos os melhores dos melhores, porque não somos, não é? Quem se constrói como a Europa se construiu, se não fizer a sua catarse histórica continua a ter esse fantasma a ensombrar o seu presente. É o que está a acontecer, a Europa, nesse momento, está a ser assombrada pelos fantasmas do seu passado e a forma como lida com a imigração é exactamente essa: são os fantasmas do passado que neste momento perseguem o seu presente e, ou há essa ruptura, ou então nada feito. Porque eu pergunto, as pessoas por que é que vêm? Pois é, mas a pergunta é exactamente esta, por que é que vêm? Porque o que eles têm está aqui! O que eles têm está aqui! Eles vêm buscar o que têm, o que é deles e as pessoas não percebem isto! Basta nós olharmos os fluxos. Eu, muitas vezes, fico chocado com a ignorância organizada. Nós vemos, por exemplo, os fluxos de capitais: o dinheiro que vai de sul para norte é maior do que o dinheiro que vai de norte para sul, em proporções gigantescas; as matérias essenciais de todos nós enquanto humanos: o que sai de sul para norte é maior do que o que sai do norte para o sul. Como é que querem que, no modelo em que foi criado, em que as pessoas têm que viver de dinheiro e de consumo, em que o dinheiro e o consumo está concentrado de um lado da barricada, que as pessoas não vão à procura disso? Expliquem-me como é que querem fazer! Não dá! Ou o modelo económico muda, absolutamente, este modelo desenvolvimentista… porque esta ideia de que nós, o que temos de fazer agora é criar as condições para haver crescimento económico, é continuar a permitir à Europa manter exactamente a mesma política em relação ao resto do mundo. A questão da mobilidade, se é possível falar nesses termos, não é uma questão económica, é uma questão política! Porque é uma questão de escolhas!

R. Alves: Até então temos vindo a falar da Europa como espaço geopolítico. Qual tem sido o papel do Estado português nestes processos?
Mamadou Ba: Primeiro, dizer que Portugal parece protegido, do ponto de vista da sua opinião pública, em relação a isto porque não está no sul ou na primeira porta de entrada da Europa. Há duas coisas que nós podemos dizer que podem desmentir esta ideia de que Portugal não está envolvido. Primeiro, o seu papel institucional na formulação estratégica dessa política: Portugal está na Direcção da Frontex, o antigo Diretor-geral do SEF era Director-adjunto da Frontex; depois, em 2001, instaurou as AP, que são laboratório para a Europa. As AP são a legalização da precariedade do ponto de vista da relação institucional e jurídica. Como nós não vemos a fronteira, a ideia que se dá é que: “pronto, nós estamos longe disto, não é aqui”, mas não é verdade. Na prática legislativa tu tens exemplos concretos que Portugal é uma vanguarda no experimentalismo jurídico sobre a gestão dos fluxos migratórios e também, por exemplo, nas estruturas mais de vigilância e de repressão. O comando operacional da Frontex, que é a Fast-track, tem muitos militares da GNR que são destacados da NATO e fazem parte desse dispositivo e nós, durante muito tempo, usámos meios militares da marinha para operações da Frontex. As corvetas da armada fazem muito patrulhamento, por exemplo, na costa Atlântica e, muitas vezes, esses meios são utilizados também nas operações mais concertadas da União Europeia, quando há operações entre a NATO e a Frontex. Os meios estão estacionados em Oeiras, aqui na base da NATO, corvetas e helicópteros que são usados para fazer a vigilância da Zona Sul (Malta, Chipre, Grécia, fronteira com a Líbia, Tunísia e Turquia). Temos um papel determinante nesta história por mais que as pessoas achem que não.

R. Alves: Para além do regime colaboracionista e de algum protagonismo do Estado português no policiamento das fronteiras e nas agências de vigilância há também uma racionalidade do Estado português que depois se aplica dentro das ditas fronteiras do Estado-Nação. Neste sentido, há um conjunto de coisas, todas elas produzidas como situações de violência de Estado que seria interessante discutir.
Mamadou Ba: Portugal é um país colonialista e os países colonialistas têm uma cultura de indigenato na sua relação com as pessoas que são diferentes. Assim, toda a sua produção legislativa e jurídico-administrativa arreiga-se claramente neste postulado de que há gente e há indigente! E isto vê-se através da sua organização urbana e territorial, através da sua organização política e através da sua organização económica. Se nós pegarmos na organização territorial, há uma continuidade histórica na forma como sempre se criaram espaços urbanos guetizados entre o sujeito e o indigenato, não é? E depois, do ponto de vista político, de como a organização do Estado está feita, só é daqui quem é lusitano, não é? Quem não é lusitano, na sua acepção mais retrógrada do termo, não é português. Pode ter nascido aqui, pode vivido aqui. Mais uma vez, a nação é maior que a cidadania e esse é o chapéu que basicamente sustenta toda esta lógica de discriminação a que os imigrantes e os seus filhos são sujeitos em Portugal. A ideia de que eles, sim senhora, podem ser cidadãos mas são menores, porque não são nacionais, ou seja, gente contra indigente. Não temos nenhuma visibilidade, nenhuma hipótese de confronto político que dê visibilidade às comunidades negras e ciganas no país, não temos. É estrutural. A ciganofobia e a negrofobia são estruturais nas instituições portuguesas, são estruturais e é por isso que há uma necessidade que as instituições sentem de invisibilizar exactamente isto. Portanto, se nós nos mantivermos assim, numa paz podre, em que conseguimos controlar e manietar a hipótese de haver este levantamento das periferias e continuando a periferizar e a criar essas fronteiras internas, de quem faz parte e quem não faz parte… porque, como te disse uma vez, para mim a ideia da Europa é esta, podemos resumir isso numa frase: fazer ou não parte. É simples. E para mim, quando fui a Lampedusa, foi o que me ficou e ficará para sempre. Eu fui ao cemitério e percebi tudo. Os imigrantes não fazem – mesmo mortos – parte da humanidade. É simples. Na Europa é simples e essa é a ideia que está, que vigora, no dia-a-dia dos imigrantes. Eu sei que isto é violento. As pessoas não gostam de ouvir este tipo de coisas porque parece hiper-exagerado mas, para mim é simples, é isso: fazer ou não parte da humanidade e, para a Europa, há pessoas que não fazem parte da humanidade e esta ideia não é nova, ela parte da escravatura. Quando a Europa decidiu que podia pegar em pessoas e fazer delas burros de carga, retirou-lhes humanidade. A Europa continua a ter no seu subconsciente político esta ideia de que há gente e indigente e isso vê-se com o aumento da violência policial e a sua impunidade; com a indiferença e o alheamento do Estado na sua regulação através da justiça; com a conivência da justiça com a violência policial e a violência de Estado; com a legitimação social do racismo institucional através da culpabilização, sempre, das vítima; e, com a marginalização económica, cultural e política das ditas minorias étnicas no país. É terrível olhar amanhã para a Assembleia da República, depois de uma eleição, e constatar que a branquitude continua a gerar normalidade num país que é diverso. Algo não bate bem. É o que vamos ver nos próximos dias, para perceber – para quem anda distraído – que a branquitude é a normalidade num país diverso.

R. Alves: Será que podias falar, por último, sobre a questão do encarceramento de minorias e imigrantes nas prisões como nos centros de detenção?
Mamadou Ba: Eu acho que nós podemos juntar isso a uma ideia que é uma permanente reclusão identitária. A Europa tem uma política de confinamento, sempre teve essa relação com o resto do mundo. Não é por acaso que se acha o centro, não é por acaso que tem essa história da Europa Fortaleza. A ideia de confinamento… a Europa sempre gostou disto e isso traduz-se na sua política quotidiana, contemporânea. O confinamento obriga ou conduz à reclusão e a Europa é isso. Tu pões uma série de gente reclusa num determinado espaço, seja pela organização que tu fazes do espaço público, da cidade e da própria divisão económica. Tu pões essas pessoas em reclusão e os imigrantes são o melhor exemplo do que significa isso. É cíclica a reclusão dos imigrantes: eles ficam fechados em determinados espaços, na área, por exemplo, laboral. Não sei se tu sabes mas em França há profissões que não podem ser desempenhadas por estrangeiros, está escrito na Lei, na Constituição. Em Portugal só as profissões ditas de soberania, basicamente do Estado, é que estão clarificadas. Isto põe as pessoas em reclusão porque estão confinadas num determinado espaço e não podem sair dele. Há um certo determinismo sociológico e um tanto determinismo político, ou seja, a política decide que tu, por estares na condição de imigrante, só podes trabalhar na construção civil, na restauração, não podes fazer mais nada; e não é só por seres imigrante, é também por seres diferente, por seres negro, por seres árabe. Depois, por isso, com esse confinamento, tu está mais sujeito à vigilância social e à repressão. Então como é que o Estado faz para garantir que te confinou em determinada identidade e num determinado espaço, como é que te vigia? Pondo-te em prisão, detendo-te, guardando-te, evitando que tu possas fazer parte do resto da sociedade e aí é que tu vês! Por exemplo, a presença de jovens negros ou de origem estrangeira nas prisões é exponencialmente maior que o resto da sociedade, em proporção. Isto, tem duas funções: a função de controlo e confinamento mas também a função de estigmatização. Porque a prisão não é um sítio de redenção de uma falha social, é um sítio de castigo por uma desadequação social. Portanto o que se quer transmitir é que vocês são propensos… continuam num registo de bom selvagem, são não-cumpridores do contrato social portanto merecem ser castigados. E as pessoas que merecem ser castigadas não merecem confiança e as pessoas que não merecem confiança não têm lugar na sociedade. É tudo uma cadeia, é uma cadência e isto é através da história colonial, a história esclavagista da Europa. Tudo, ou seja, nada é por acaso, outra vez, voltamos a isto. Tudo isto tem uma explicação concreta. A ideia de confinamento é uma ideia que foi aceite porque estratifica as relações sociais e culturais, porque usa a indiferença para gerir a diferença e, por isso mesmo, não se fala disso, isso não existe.
Sobre o encarceramento – a nível da arquitectura jurídica nacional – meramente por transgressão do espaço de pertença, ou seja, geográfico, por parte dos imigrantes, não se fala, porque a ideia é exactamente esta: “eles não são acomodáveis nos registos da normalidade social que nós queremos, por isso, têm que ser fechados” e fechamo-los pelo que eu disse há pouco. Essa cadeia é terrível porque ela continuará sempre a manter confinadas as pessoas que são diferentes do resto da sociedade e a mantê-las excluídas e marginalizadas, sempre. Depois isto cria uma certa legitimidade social de que são perigosas, de que não são capazes de fazer parte da sociedade, de que não têm competência social para pertencer à nossa comunidade e por isso ou têm que ser reclusas ou têm que ser confinadas. Portanto, a ideia de centros de detenção interliga-se muito com isto e isto é trágico. Quando olhamos para o caso de menores não acompanhados nós percebemos isto, aí todo o discurso humanista cai por terra. Essa hipocrisia de que os Europeus “somos bons”… essas circunstâncias mostram realmente: “Não, eles são maus!”, a Europa é má. A Europa é uma prisão a céu aberto, tal como as suas fronteiras são cemitérios a céu aberto para quem a procura.

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